Chorar tem que se lhe diga: é uma arte. Pelo menos, é-o para
uma família disfuncional do Jutlândia, no sul da Dinamarca. No final dos anos
60, numa região rural, há uma família que marca presença em funerais, mesmo quando
não conhece bem o morto, para chorar em coro e discursar no enterro. Por vezes,
dão também uma perninha em festas de aniversário. Esta arte é, no entanto,
treinada em casa com auxílio de livros e músicas tristes.
A Eucleia e João Reis trazem-nos a primeira tradução portuguesa de um romance que, por vezes, roça o sublime. Erling Jepsen, (n. 1956, Gran, Dinamarca) apresenta-nos em A Arte de Chorar em Coro a vida vista por Allan, um menino de 11 anos que pretende seguir as pisadas do pai e tornar-se um bom orador fúnebre. Allan, como todas as crianças da sua idade, ocasionalmente leva tareias - «Dói, claro, mas não me incomoda demasiado; desde que ninguém o veja.» - e brinca com os amigos, mas é a sua família que importa realmente, mais que tudo. Depois, há ainda o Tarzan e o arcanjo Gabriel que o ajudam no dia-a-dia e durante o sono. Depois disso, vem Gazan Tarriel, a fusão natural entre o arcanjo e o homem da selva, uma espécie de super herói com poderes metafísicos, que Allan crê realizar os seus desejos, mesmo os pedidos mais mauzinhos.
O ponto forte do romance reside na forma como o menino vê o mundo - vê-o sempre com uma “inocência” que só as crianças experienciam, mesmo quando leva tareias: «E recomeça, mas não como antes; agora começa a bater depressa, depois devagar e, em seguida, outra vez depressa, sem nenhum ritmo, e uma vez até falha o golpe! (…)» (pág. 59) -, e no humor que Jepsen utiliza - «O pai tem medo que seja maricas: o que significará isso? A mãe diz que não, que as coisas são assim nas cidades grandes; comem com faca e garfo todos os dias, como nas festas.» (pág. 61). Ah, as crianças são mesmo muito “inocentes”: «Será que o Asger [irmão mais velho de Allan] não compreende que há um motivo para que o pai e a Sanne [a irmã] durmam juntos no sofá? Deveria considerar o que aconteceria se não o fizessem. Como se sentiria o pai?» (pág. 65)
Afinal de contas, amigo Shakespeare, não há nada de podre no reino da Dinamarca, como comprova este excelente romance.
«- Ele tinha uma erecção?
Não sei bem o que quer dizer com essa palavra.
- Quando estavam a tocar-se no quarto, sem roupa nenhuma,
ele tinha a pilinha para cima?
- Não sei – respondo -, não vi.» (pág. 227)
Apesar da disfuncionalidade apresentada – encesto, tragédia, morte, funerais -, A Arte de Chorar em Coro é tudo menos triste. Uma ode à boa disposição em tons sérios que nos fazem reflectir sobre a «gravidade da vida».
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