terça-feira, 10 de maio de 2011

José Cardoso Pires «Dinossauro Excelentíssimo»


“Mestre com a caneta, mestre com o pincel. A tua escrita deslumbra pela aparente simplicidade, por aqueles pormenores deliciosos que se devem ler nas entrelinhas desse teu nevoeiro que se intromete nas manhãs e noites que criaste ao longo de uma pilha de páginas que escreveste. Aquela tua obra-prima sobre os delfins e aquele quadro que tu pintaste de forma tão anedótica e grotesca sobre aquele dinossauro? Ufa. E agora, José?” 

Estas seriam as palavras que eu diria a José Cardoso Pires numa conversa qualquer. Sentadinhos numa esplanada sob o sul ardente, mas com uns belos Carrera a proteger-nos dos raios UV, eu a beber um chá geladinho e tu um whiskey, empunhando um cigarro, mandando altas bafaradas para o ar porque sabes que eu não gosto de respirar o fumo alheio. “E falávamos do nosso amigo Antunes? Com certeza que sim. Sabes perfeitamente que tu e o Antunes são dois dos melhores escritores de sempre. Ele e aquela coisa dos pássaros e tu com aquele assunto do tipo da Gafeira dava perfeitamente para ganhar lá aquele galardão sueco, mas olha que dava mesmo. Quê? Por que razão é não que devia convidar o António? Ah, estavas a brincar, pá. Sempre irónico, sempre irónico, tst, tst.”

Estou a imaginar-me a conversar com José Cardoso Pires e tenho já dois tipos de sentimentos: um de enorme saudade, outro de gargalhada. Nunca o conheci, mas tratá-lo-ia por tu porque a relação de proximidade, amizade e intimidade que ele me transmitiu nas obras que deixou comigo e consigo, dão-me o direito de não enveredar por “o Sr. Cardoso Pires” ou “você”. Quanto à fábula sobre o dinossauro, esse animal pré-histórico (riso. Sempre existiu história) nascido ali no centro do país e que, coitadinho, os pais venderam tudo o que tinham para levá-lo para a universidade e se tornar num Doutor. Um dê-erre. Um excelentíssimo Doutor que governava o Reino dos Mexilhões com fome e miséria, mas sempre em prol da pátria. Os mexilhões aqui são o povo e o Doutor é Salazar, o “dinossauro” que até com o espelho gostava de falar e que tinha uma estátua de bronze igualzinha a ele. 

Esta sátira foi escrita em 1970, de modo que nela não se encontram alusões à Revolução dos Cravos. No entanto, no final do livro há um sinal de esperança e um vento de mudança em torno do pobre Reino. José Cardoso Pires explora aqui, com o peito cheio de coragem, o regime salazarista e ridiculariza-o ao ponto de me virem as lágrimas aos olhos de tanto rir, enquanto que a pobreza descrita, essa, me entristece. “Vai mais um copo, Zé?”

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