Não fosse o original e fantástico
talento, Vladimir Nabokov seria o escritor mais arrogante e presunçoso que alguma
vez li. Este russo, nascido em 1899, é aquele autor capaz de logo no início nos
oferecer o final do romance, ou então criar um prefácio qualquer com uma série
de spoilers. Mas também não é bem
assim, isto é, nada do que Nabokov escreve deve ser interpretado à letra. Há
que ter sempre margem para se interpretar o oposto daquilo que está escrito.
«O livro tem menos atractivos de
teor russo-branco do que os meus outros romances de emigre; daí, ser menos confuso e irritante para os leitores criados
na propaganda esquerdista dos anos trinta; por outro lado, os leitores
inocentes acolherão favoravelmente a sua estrutura inocente, a intriga inócua,
que, aliás, não é tão familiar como supõe o autor da carta insultuosa do
Capítulo 11. Ao longo do livro, há muitas conversas interessantes e a cena
final, com Felix na floresta invernosa, tem, evidentemente, muita piada.» De
facto, o romance é hilariante em praticamente todos os seus segmentos, com
muito espaço para inverosimilhança e escárnio pela literatura e pelos críticos,
assim como a União Soviética – o livro foi escrito no auge do regime russo, em
1934.
Desespero conta-nos a estória de
um russo que vive na Alemanha, Hermanm, casado com Lydia, que tenta encenar o
crime perfeito: a sua própria morte – uma alusão a Crime e Castigo de Dostoyevsky, suponho. Numa viagem a Praga,
Hermann conhece um vagabundo chamado Felix, alguém que supostamente, segundo
Hermann, é o seu duplo. Hermann acredita que as suas semelhanças físicas com Felix
são perfeitas e então prepara o assassinato do checo para ficar com o dinheiro
de um seguro que faz com Lydia. As linhas de Desespero estão embutidas em puro sarcasmo e desprezo pela
vulgaridade, um desprezo destinado sobretudo à linearidade literária daquela
época: «Desespero, parente do resto
dos meus livros, não tem comentário social a fazer, não traz mensagem nos
dentes. Não endireita o órgão espiritual do homem nem mostra à humanidade a
saída justa. Contém muito menos «ideias» do que qualquer um desses ricos
romances populares tão histericamente aclamados na curta câmara de eco entre o
aplauso e a vaia.», explica Nabokov no prefácio.
A “loucura” de Nabokov é tal, que
este inicia um dos capítulos do romance de várias formas, todas elas
perfeitamente válidas e com nexo, e qualquer uma delas serviria para o autor continuar
a desenvolver a obra. De facto, o distanciamento de Nabokov perante os grandes
nomes da literatura – ou aqueles aclamados pela crítica – parece-me ser um dos seus
objectivos. Criar uma obra de ficção onde a personagem principal é um sujeito
matreiro, egocêntrico, em quem o leitor não pode confiar nem acreditar em nada
do que ele diz. Hermann sobrepõe-se frequentemente a Nabokov, como se tivesse
sido Hermann o autor da obra, o que me leva a questionar se Hermann terá sido
um duplo do próprio Nabokov. Contudo, Hermann é escrito e rescrito a todo o
instante, logo não pode ser um duplo no verdadeiro sentido do termo; Hermann é
uma personagem que se quer transpor para a vida real e tomar o lugar do próprio
autor, no entanto, sempre que isso sucede, Nabokov trata de rescrevê-lo.
Desespero é um romance de sarcasmo e ilusão singulares, criado a
partir da grande loucura egocêntrica de Nabokov. Um romance a ser relido, sem
dúvida.
Dá-lhe duro :D
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