Tom Sawyer terá sempre um espaço no meu coração. Recordo-me, como se fosse hoje, de quando era criança e via religiosamente as aventuras de Tom e Huckleberry Finn na RTP. “Vês passar o barco, rumando p’ró o sul. Brincando na proa, gostavas de estar. Voa lá no alto, por cima de ti, um grande falcão, és o rei, és feliz “, era desta forma que começavam os desenhos-animados d’As Aventuras de Tom Sawyer. Tom e os amigos viviam numa cidade perto do rio Mississipi e era nesse rio que cresciam como rapazes, arranjando, sempre que possível, sarilhos.
William Faulkner também cresceu no rio Mississipi, no estado de Mississipi. Este rio, que acompanhou a carreira literária de Faulkner, é mágico e tem uma simbologia transcendente – tal como tinha para Mark Twain e o seu Tom Sawyer. Nascido em 1897, Faulkner viria a morrer em 1962, devido a ataque cardíaco. No entanto, recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1949, tinha ele apenas 52 anos, o que não deixa de ser de certa forma invulgar - este prémio costuma ser atribuído a escritores mais envelhecidos. Desde A Paga do Soldado, o seu primeiro romance publicado, até Os Ratoneiros, William Faulkner deixa-nos um legado riquíssimo. Neste legado encontra-se O Som e a Fúria, uma obra vista como um dos maiores romances do séc. XX.
Em O Som e a Fúria (tinha o autor apenas 32 anos), é-nos contada o declínio da família Compson, residente no Condado de Yoknapatawpha, Jefferson, no estado Mississippi. Através desta família aristocrata e o seu declínio social e económico, é-nos relatado a mágoa, a dor e a queda dos valores humanos; Os Compsons e o Mississipi são o espelho do falhanço do Sul na resposta à guerra civil norte-americana: em vez de levantar a cabeça e viver em harmonia, respeitando as diferenças entre os brancos ricos e os negros pobres, o Sul vive num clima de racismo, assimetrias sócio-económicas e resignação. Na hora de haver uma união que permitisse à região unir-se e reconstruir-se, para acompanhar a paz vivida no Norte do país, há apenas avareza e egoísmo demasiado patentes. É esta dor que acompanhou toda a vida de William Faulkner e praticamente toda a sua obra: a dor de um Sul miserável – especialmente ao nível dos valores humanos.
A obra está dividida em quatro partes, as quais são narradas por Benjy, Quentin, Jason e um narrador na terceira pessoa, respectivamente. A família Compson é composta por Jason e Caroline, que têm os filhos Caddy, Quentin, Jason e Benjy, e por Maury, tio destes. Caddy tem também uma filha chamada de Quentin. Paralelamente, há Dilsey e a sua família (os negros do romance) que tratam das lidas da casa. A primeira parte do livro é, sem dúvida, a mais difícil de se perceber, pois é contada por Benjy. Benjy é deficiente mental (sofre de autismo) e, em virtude disso, vai contando a estória de forma não-linear, através de analepses algo bruscas. Faulkner recorre, em especial nesta primeira parte, à técnica do fluxo de consciência nas várias quebras de pontuação e sintaxe. Para o ajudar um pouco, o autor escreve em itálico sempre que Benjy viaja no tempo. Mesmo assim, a narração de Benjy encontra-se submersa num nevoeiro de decifrar. A segunda parte, narrada por Quentin (, foca-se na obsessão deste perante a sua irmã mais nova Caddy. A promiscuidade de Caddy, a tentativa de protecção e a queda dos velhos valores sulistas levam Quentin ao suicídio. Na terceira parte, Jason (filho) assume o controlo da família, depois da morte do pai Jason. Na última parte todo o nevoeiro se evapora através da ausência de qualquer narrador na primeira pessoa. Só aqui o leitor se apercebe da verdadeira estória da família Compson e consegue separar bem os nomes dos familiares que se repetem (um e uma Quentin, dois Jasons. Convém referir que cada parte corresponde apenas a um dia na vida de cada narrador.
O Som e a Fúria é um romance que vale a pena ser lido várias vezes para sua total compreensão. William Faulkner foi um escritor que inovou bastante no campo da literatura e as suas obras reflectem-se um pouco em alguns dos nossos escritores, como é o caso de António Lobo Antunes (para Lobo Antunes, Benfica é o Mississipi de Faulkner). Este registo está para Faulkner como Ulisses está para James Joyce: a maior obra de cada um deles. Leitura obrigatória.
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