Joaquim Sassa atirou uma pedra ao mar com força sobrenatural, Joana Carda dividiu o chão com uma vara de negrilho, José Anaiço atrai uma nuvem de estorninhos, Pedro Orce sente a vibração da terra com os seus pés e a Península Ibérica vai à deriva pelo Atlântico em direcção aos Açores.
Esta jangada de pedra que é a união de Portugal e Espanha num só país, distante da Europa, é uma fábula que José Saramago escreveu em 1986, ano em que Portugal entra na Comunidade Económica Europeia (hoje União Europeia), e que defende a ideia do Iberismo, através de uma crítica ao pós-25 de Abril e a situação de crise que o país atravessou na década de oitenta – e que ainda atravessa, como todos sabemos. À excepção de Pedro Orce, um sevilhano, todos os protagonistas deste romance são portugueses (há, mais para o final da obra uma outra personagem espanhola que se junta ao quarteto) e, como descrito no primeiro parágrafo, passaram por eventos estranhos que coincidiram com a ruptura territorial da península; os personagens vão-se conhecendo em ritmo nómada, tal como antes da invenção do automóvel, época onde o povo português e espanhol, tão parecidos em vários aspectos observados por Saramago, se deslocavam com bastante frequência de terra em terra em busca de novos locais.
Como é apanágio da obra samagaguesca, existe uma série de eventos que resultam no caos social e que conduzem à intervenção das forças de segurança e defesa do Estado, assim como uma comunicação social que procura, através da ciência, encontrar justificações para o absurdo da realidade; em pânico, o rei espanhol e os ministros de Portugal reúnem-se para tentar perceber e emendar a separação da Península Ibérica do resto do mundo, enquanto são pressionados pelos governos norte-americanos e europeus. O ritmo da acção principal é frequentemente cortado pela intervenção de um narrador heterodiegético que nem sempre sabe o que vai acontecer no momento seguinte da história, mas que gosta de utilizar provérbios e desmistificar os mesmos. De facto, e acontece isto na maioria dos romances de Saramago, há um exagero na hora de extrapolar os ditos populares e, não que o autor não tenha razão, estas intervenções narrativas cortam em demasia o ritmo da história e tornam-se, por vezes, aborrecidas.
Exagero também na forma gratuita como, por vezes, Saramago aproveita para criticar as divindades; é evidente que o recorrer em demasia à crítica cristã nem sempre funciona e só, quando bem empregue, resulta bem. Exemplo crasso deste exagero, e tal como o próprio escritor admitiu numa entrevista, nem sempre o uso da crítica funciona da forma que o autor tem em mente: a utilização de «Deus é um filho da puta» na obra Caím acabou por por de pés atrás o mais ateus dos ateus. Aqui não fala da mãe de Deus, porém exagera manifestamente na recorrência à crítica em quantidade e não em qualidade, passe-se os termos.
A simbologia é outro dos aspectos bem trabalhados nesta obra, mas, e comparando com Ensaio Sobre a Cegueira, por exemplo, fica um pouco aquém do esperado. Em termos gerais A Jangada de Pedra é um bom livro, ainda que padeça das referidas quebras narrativas e de um bocadinho de falta de criatividade que Saramago utilizou na elaboração de Memorial do Convento ou O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
Olá Simão,
ResponderEliminarCom todo o respeito deixe-me fazer uma pequena correção. Saramago não disse "Deus é filho da puta", mas sim "deus é um filho da puta".
São afirmações completamente diferentes.
Muito bem ressalvado.
EliminarBom dia, Tiago
ResponderEliminarCreio que se equivocou, pois escrevi precisamente «é um».
Olá Simão,
ResponderEliminarSim tem razão, enganei-me, peço desculpa, mas a diferença não é essa, a diferença está em Deus. É que o Deus do Evangelho Segundo Jesus Cristo é um Deus escrito com letra maiúscula, enquanto que em Caim deus é escrito em letra minúscula.
Uma pequena grande diferença.