sábado, 23 de abril de 2011

George Orwell «Animal Farm»

 
Escrito durante a Segunda Guerra Mundial, no período em que Stalin rompe a aliança de paz com Hitler e passa a colaborar com o Reino Unido, Animal Farm (em português O Triunfo dos Porcos) baseia-se na experiência pessoal de George Orwell enquanto combatente na Guerra Civil de Espanha e o seu olhar sobre o regime stalinista e as suas manobras. Apesar de não ter visitado a União Soviética, Orwell conheceu em primeira mão o fascismo franquista e a tentativa da implementação do comunismo marxista em Espanha, que visava um mesmo sistema totalitário.

Publicado pela primeira vez em Agosto de 1945, sensivelmente um mês antes do término da guerra, esta fábula sarcástica centra-se no período da História russa, desde a revolução bolchevique de 1917 até 1945. Para isso, Orwell criou uma vulgar quinta onde os homens mandam e os animais trabalham em regime de exploração, tal como o panorama actual, sem tirar nem pôr. Nesta quinta os animais falam entre si reúnem-se para discutir o sistema de classes em vigor na quinta onde trabalham arduamente. Para derrubar o Sr. Jones (Czar), o javali Old Major (Karl Marx) propõe uma coligação entre todos os animais para instaurarem um sistema de governo que tornará todos os animais iguais entre si e independentes dos humanos.

Uma vez aceite o repto do Major, os animais enchem-se de coragem e força e conseguem expulsar os humanos da quinta, instaurando a filosofia do “Animalismo” e os seus mandamentos: 1º- Tudo o que anda sobre dois pés é inimigo; 2º- Tudo o que anda sobre quatro pés, ou asas, é amigo; 3º- Nenhum animal usará roupas; 4º- Nenhum animal dormirá numa cama; 5º Nenhum animal beberá álcool; 6º- Nenhum animal matará outro animal; 7º- Todos os animais são iguais. A partir daqui, são-nos apresentadas sucessivas tentativas de cooperação entre todos os animais, contudo há animais mais espertos e com grande grau a nível de discurso retórico e verosímil que aproveitam para se tornarem líderes.

Os porcos Snowball (Trotsky), Napoleon (Stalin) e Squealer (Molotov) vão-se aproveitando da classe operária, representada pelo cavalo Boxer, para criarem hábitos que outrora pertenceram aos humanos. A juntar a isto, os porcos conseguem alterar progressivamente o Animalismo até que conseguem criar apenas um mandamento universal: Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros. É essencialmente sobre este mandamento que Orwell explora a hipocrisia da ditadura do proletariado e a tentativa utópica de uma sociedade comunista sem classes.

Tal como no seu romance prévio Nineteen Eighty-Four, o autor explora com olho de falcão os ideais e a ascensão do regime comunista russo e compara as suas similaridades com os demais regime fascistas. Animal Farm é uma fábula de leitura obrigatória e um dos livros mais importantes do séc. XX.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Douglas Coupland «Generation A»


Foi preciso esperar dezoito anos para ter nas mãos aquele que pode ser interpretado como o sucessor de Generation X, de 1991. Douglas Coupland é um dos autores canadianos mais irreverentes das duas últimas décadas e uma das vozes que mais contesta a globalização e a alienação social provocada pela tecnologia e pelos media, tal como Bret Easton Ellis ou Chuck Palahniuk.

Generation X: Tales for an Accelerated Culture, o primeiro romance da sua carreira, teceu críticas cáusticas e mordazes à geração que vivia apenas o momento e o que a tecnologia oferecia, uma geração que basicamente seguia religiosamente o “hype” consumista que os media facilmente lhes impingiam. No lado oposto a essa geração está a geração X de Coupland, dos anos 60; um grupo de pessoas que gostam de pensar por si mesmas e de se revoltar contra a cultura pop. Estranhamente, o autor decidiu que o termo “geração X” já não tinha razão de existir, poucos anos após a publicação do romance. De qualquer das formas, convém ressalvar que Coupland sempre se distanciou de ser a voz dessa geração.

Este Generation A foca-se essencialmente no actual estado da tecnologia e dos media, nomeadamente nos no impacto que ambos estão a ter na sociedade, especialmente entre os mais jovens – oficialmente, não estamos perante uma sequela, nem temos personagens anteriores aqui presentes. A narrativa apresenta-se fragmentada e é contada a partir do ponto de vista de cinto personagens separadas geograficamente: Harj Vetharanayan, Sri Lanka; Zack Lammle, Iowa, E.U.A; Samantha Tolliver, Nova Zelândia; Diana Beaton, Canadá e Julien Picard, França. O mundo destas cinco personagens é dominado por uma droga chamada Solon que se caracteriza por libertar o stress, relaxamento e desinteresse em relação ao futuro. O outro aspecto importante do livro é as abelhas, que são uma espécie rara, até ao dia em que os cinco indivíduos são picados por abelhas e transportados para uma ilha no Canadá para serem observados e estudados.

Os nossos narradores são idolatrados pela população mundial e estudados pelo grupo dos cientistas pelo facto de terem sido picados pelas abelhas, pois são encarados como factores de esperança num mundo onde determinados itens de alimentação passaram a luxo, devido à falta de abelhas. Cada personagem tem o seu momento de fama, seguido e transmitido em directo pela internet, mas são as estórias que eles contam quando se encontram juntos que metaforicamente criticam a actual dependência das ferramentas online, da padronização IKEA, do Google, da Apple, da Wikipedia e de outras entidades semelhantes. Cada capítulo é narrado, salvo raras excepções, por Harj, Zack, Samantha, Julien e Diana, e cada personagem tem a sua forma cómica de criticar o mundo. Sem embargo, Julien e Zack são as personagens que aparecem inicialmente inseridas no mundo alienado, especialmente Julien que vivia os dias a jogar World of Warcraft.

Generation A tem momentos deliciosos na forma como critica o consumismo e os americanos. Harj, por exemplo, não só é a personagem mais directa e conscienciosa do romance, como também é aquela que mais critica os americanos. Ao contrário de Palahniuk e Easton Ellis, Coupland consegue inserir aqui o referido factor de esperança para o mundo, tornando-o num autor mais positivista, sem que no entanto se coíba de escrever sobre ambientes e temáticas problemáticas e desagradáveis.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Comeback Kid «Wake the Dead»


Recuando no tempo aproximadamente três décadas, Milo Goes to College e I Don't Want to Grow Up foram os dois melhores e mais influentes discos de hardcore punk melódico editados na década de 80 pelos The Descendents. Tinham a garra dos Black Flag, as músicas rápidas dos Minor Threat e a melodia pop digna dos grandes Ramones. 

Com o passar do tempo, o hardcore melódico esmoreceu um pouco e a aplicação do próprio termo passou a englobar bandas tão díspares como AFI, 30 Seconds to Mars, Poison the Well ou Comeback Kid. Estes últimos (sem qualquer tipo de desprimor pelos Poison the Well) carregam o legado dos dois álbuns referidos dos The Descendents e sabem aproveitar aquela classe única dos Gorilla Biscuits na mistura de alguns "riffs" típicos de metal com “breakdowns” e “sing-alongs” de Start Today

O excelente “debut” Turn it Around colocou a banda de Winnipeg, Canadá, no mapa e roteiro obrigatório da música hardcore. Graças ao sucesso do álbum, a banda foi convidada a assinar pela editora Victory Records (Carnifex, A Day to Remember, Integrity, Emmure, Between the Buried and Me, etc) que ainda no ano passado lançou Symptom + Cures. Wake the Dead é dos melhores trabalhos editados nos últimos anos de hardcore, seja ele de que subgénero for. As melhores malhas que a banda escreveu estão, na minha opinião, incluídas neste belo registo, avassalador do primeiro ao último segundo. Há aqui temas que ficam no ouvido logo à primeira audição, sem tirar nem pôr. O processo de composição e estrutura dos temas é simples e funciona na perfeição, acrescentando-lhe um certo aroma FM, devido às letras de fácil memorização e positivismo, ao grande (des)empenho do vocalista Scott Wade e aos coros de fundo que se fazem ouvir ao longo de vinte e seis minutos. 

O tema que dá título ao álbum é dos mais fortes e orelhudos do disco: contagiante, rápido (nota máxima para o trabalho do baterista Kyle Profeta), “breakdown” curto e discreto (excelente para o “slam dance”), e “sing-alongs” excelentes. Resumidamente, esta é a estrutura presente em todos os temas de Wake the Dead, de onde vale a pena destacar ainda os clássicos Partners in Crime, Our Distance (com participação de Russ Rankin, dos extintos Good Riddance) e Final Goodbye.

A juntar ao talento dos músicos e qualidade das canções, há que juntar e salientar a produção irrepreensível levada a cabo por Bill Stevenson (baterista dos… The Descendents). Composto por onze temas, este disco é um autêntico vício para os ouvidos.

8.5/10

domingo, 17 de abril de 2011

Walls of Jericho «The American Dream»


Cheguei a questionar-me sobre o futuro da banda após a gravação do EP Redemption e das suas cinco baladas, para além do facto de ter ser sido um registo produzido por Corey Taylor. A grande questão era se a direcção musical da banda iria apostar numa toada mais ao jeito de Evanescence com hardcore relegado para segundo plano, em tons de camuflagem.

A resposta chegou uns meses mais tarde, ainda no mesmo ano (2008), com este The American Dream. O longa-duração anterior With Devils Amongst Us All já se distanciava dos trabalhos mais hardcore da banda e aproximava-se mais de um som mais metálico, vincadamente mais thrash metal e com muito groove. A banda voltou a pegar nesse aspecto e a trabalhá-lo ainda mais, apostando mais no referido thrash metal e misturando-o com as suas raízes hardcore punk, tal como muitos grupos na actualidade vão fazendo (Bury Your Dead, Throwdown, Municipal Waste, Hatebreed) e outros no passado já fizeram – Suicidal Tendencies serão sempre a grande referência do crossover.

O disco está recheado de temas fortes e bastante intensos, com bons pormenores musicais; no entanto, é notório que a aposta vincadamente mais metal retira parte da alma da banda e do seu habitat natural. Os “riffs” que as guitarras debitam repartem-se em momentos excelentes de grande fulgor (The Prey, Famous Last Words), bem ao estilo da Bay Area, e em momentos de redundância que quebram demasiado o ritmo, caindo com alguma frequência num vazio de “breakdowns” (Feeding Frenzy, The Hunter). As letras do álbum revelam-se interventivas e abordam as habituais temáticas da perseverança, luta até ao fim e esperança. Nada de novo ou inovador neste departamento, portanto, e é isto mesmo que se espera ouvir num disco de hardcore.

O disco não tem necessariamente músicas más, bem pelo contrário, todas elas são interessantes a nível geral, porém o tema A Long Walk Home perde muito em comparação com os restantes e poderia muito bem ter ficado de fora do disco. No entanto, e isto é um dos pontos claramente negativos do registo, há uma notória ausência de coros, melodia e aquele “sing-along” contagiante de Revival Never Goes out of Style que os Walls of Jericho sempre souberam dominar com mestria e uma identidade muito própria.

The American Dream marcou uma clara aposta numa aproximação demasiado perigosa ao thrash metal, aposta essa que lhes custou uma perda algo significativa de identidade e de elo de ligação com o passado. A produção é outro dos aspectos que deixa a desejar, nomeadamente ao nível de guitarras e voz. Não houve colagem a Evanescence, mas houve demasiado peso e distorção para uma banda que vive claramente da boa música hardcore a que nos habituou.

6.5/10

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Mata-Ratos «És um Homem ou És um Rato?»


Famosíssimos por terem criado um partido que ainda não tem representação na Assembleia da República, de seu nome CCM, os Mata-Ratos andam no meio da música punk portuguesa desde 1982. A banda liderada pela vocalista Miguel Newton tornou-se, através de muito esforço e luta, numa banda capaz de agradar aos verdadeiros fás do Oi/Hardcore Punk e também ao ouvinte casual de rock. Para isso, muito contribuiu o hilariante single A Minha Sogra É um Boi retirado do álbum Rock Radioactivo, de 1990.

Em 2004, altura em que o nosso país organizou o Europeu de Futebol, a banda lisboeta decidiu editar o seu sétimo álbum de estúdio pela extinta Ataque Sonoro Records. Corrosivo como sempre e centrado em especial no Governo de Durão Barroso e na organização do expoente máximo da cultura portuguesa, o futebol, os Mata-Ratos escreveram aqui canções orelhudas, melódicas e com raiva q.b. - outra coisa não seria de esperar deles.

Todos os temas deste disco provocam ataques histéricos de riso incontrolável, dos quais vou destacar No Meu Sonho Era o Figo, Deus, Pátria e Família, Gangue das Batinas e Putas ao Poder. A temática central de cada um destes temas é, essencial e respectivamente, futebol, fascismo do Ultramar, religião e a corrupção contínua do nosso sistema democrático. Figo, elevado como sempre ao estatuto de herói nacional, deu a cara à candidatura portuguesa ao Europeu de Futebol e graças a ele, os portugueses tinham motivos para entrarem em êxtase. Afinal de contas, seriam dez estádios construídos para celebrar a festa cultural do desporto rei português, sendo que no final, tudo voltava (voltou) ao mesmo: Zé Povinho foi apoiar com fervor a selecção portuguesa e apercebeu-se de que no final a nota não estica para pagar as contas; os fascistas que combateram nas colónias africanas na época do Ultramar rezam para que Deus salve os seus pecados e que lhes dê sempre força para roubar em prol de um Portugal mais forte; o negócio que a Igreja faz com a religião e os padres (os tais das batinas) que comandam o rebanho; por fim, quem está já no poder planta sementes para assegurar a continuidade da actual corrupção do sistema político… por isso, mais vale meter as raparigas da má vida no poder, pois os governos são uns proxenetas. 

A linguagem utilizada neste disco é cópia daquilo a que o grupo sempre nos habituou: directa, suja e interventiva. Portanto, quem comprar És um Homem ou És um Rato sabe perfeitamente o que vai encontrar. Com uma grande corrosão política aqui presente, a importância e qualidade deste disco deve agradar tanto ao fá de Ramones, como ao de Garotos Podres.

8.5/10

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Deftones «White Pony»


Escrever sobre um álbum que saiu no dia 19 de Junho de 2000, que nessa altura causou tão boa impressão, que recebeu críticas excelentes, é, para mim, uma sensação única, tenho que o partilhar. O que quer que aqui vá ler, muito provavelmente já o fez numa outra revista, num outro texto online, e por isso terá que aceitar as minhas mais sinceras desculpas por ser mais uma pessoa que escreve sobre aquele que foi um dos discos da década passada e um dos mais fascinantes de sempre da história da música rock.

Criando uma imagem mental de tudo o que a banda lançou desde 1995 a 2010, este é o registo que se destaca dos demais pela sua singularidade e originalidade, criando atmosferas oníricas e sentimentos de amor duro, verdadeiro, cruel, misturados com a sensualidade alucinogénica e a abstracção que a mente de Chino Moreno consegue, numa primeira fase, delinear e numa segunda fase, transpor compor. O termo “white pony” é, de facto, calão norte-americano para “cocaína”, sem embargo, “Ponyboy” era o nome que Moreno utilizava muitas vezes nos hotéis, iludindo assim com este pseudónimo os fás; no entanto, White Pony acaba por ser um título que mistura essa vertente da cocaína e o mundo irreal que o vocalista adora transgredir.

Os temas Dai the Flu, Be Quiet and Drive (Far Away) e Lotion do álbum anterior Around the Fur acabaram por ser, em boa parte, o prenúncio daquilo que este álbum se viria a tornar: menor influência do metal, especialmente a nível de guitarras, um maior abraço à melodia e harmonia de vozes e espaço para exploração de ambientes e géneros musicais menos pesados. Um dos aspectos que salta imediatamente à vista no disco, é a voz muito bem mais trabalhada, a percussão variada e o uso de samples e efeitos. Objectivamente, o trabalho de Frank Delgado nos teclados e “turntables” é de uma qualidade notável, muito fora de série; trocando por outras palavras, não há a mínima comparação entre o desempenho (e utilidade) de Delgado e os dois membros de Slipknot, Sid Wilson e Craig Jones. Há uma genuína fruição entre o ouvinte e o ambiente artificial gerado nos temas Digital Bath, Teenager ou Change (In the House of Flies), entre outros.

O primeiro choque com os dois anteriores registos dá-se provavelmente com a influência do trip-hop de uns Massive Attac e Portishhead na já citada faixa Digital Bath, uma das mais envolventes de todo o disco – a minha preferida. Apesar de apresentar um ritmo calmo e digno de passar nas rádios, a canção apresenta uma letra bem negativa sobre uma rapariga que é metida numa banheira enquanto é electrocutada, sendo depois secada e vestida. Sensivelmente a meio da faixa, quando se ouve “Tonight I feel like more/ I feel like more” é audível o pico do timbre de Chino Moreno, num grito de arrepiar e guitarras intensas (duas guitarras aqui funcionam bem melhor do que Stephen Carpenteter sozinho). O segundo grande momento da canção ocorre com “You breathed / Then you stopped/ I breathed, then dried you off”, acompanhado por um sample de água e bolhas, quebrando o ritmo para logo de seguida se dar um” loop” vertiginoso e caótico. Teenager e o abuso de pop e shoegaze poderia ter sido posta de parte para o projecto Team Sleep de onde Chino Moreno faz parte; de qualquer das formas, é uma linda canção e encaixa que nem uma luva entre Street Carp e Knife Party.

Knife Party é outro dos temas que aborda o amor sob efeito de drogas de uma forma perigosa: há aqui um jogo sensual entre pessoas que se injectam (“chrome knife” é calão para seringa) e fazem sexo, ao longo de um instrumental e uma segunda voz perturbadora e assustadora. Cada jorro de sangue (injecção, entenda-se) é acompanhado por berros em desespero. Não obstante a crueldade da canção (faz lembrar um pouco a temática e a tristeza presente em Try, Try, Try dos Smashing Pumpkins), é um dos temas mais originais que ouvi no rock das últimas décadas. Há ainda destaque especial para o enorme contributo de Maynard James Keenan (Tool, A Perfect Circle) em Passenger, para o orelhudo e emotivo single Change (In the House of Flies) e para os quase oito minutos de Pink Maggit.

White Pony elevou tanto a fasquia que ficará para sempre no “hall of fame” da música com peso e sentimento. Desde o seu lançamento, a banda nunca mais conseguiu lançar outro disco igual a este, apesar do esforço e qualidade de Saturday Night Wrist e Diamond Eyes – especialmente este último. Um álbum completíssimo [para ficar ainda mais completo, nada melhor do que a aquisição do EP Back to School (Mini Maggit), de 2001], de alto calibre e sem qualquer tipo de “fillers” entre as canções: todas elas dariam excelentes singles. Seria impossível pedir mais.

10/10

terça-feira, 12 de abril de 2011

Bret Easton Ellis «Less Than Zero»


Bret Easton Ellis publicou, com apenas 21 anos e ainda na Universidade, o seu primeiro romance Less Than Zero em 1985. Durante a década da MTV e do conservadorismo do governo de Ronald Reagan, Ellis faz aqui uma viagem nosso vazio enquanto pessoas, ao mais puro niilismo do ser humano, ao viver o momento, esquecendo o futuro - seja isso de que forma for.

O livro é uma crítica mordaz à geração de adolescentes que cresceu nos aos 80 e que procurava entreter-se com vídeo jogos, festas, ver MTV, pornografia e drogas, sem pensar uma vez que fosse no futuro. A juventude desconexa e com falta de valores morais e culturais que vimos em As Regras da Atracção é a mesma que é aqui retratada, não fosse esse filme uma mera adaptação de The Rules of Attraction, a segunda publicação do autor. 

Clay regressa de New Hampshire para umas curtas férias de inverno em Los Angeles, onde revê a sua namorada, Blair, e reencontra os seus amigos Kim, Daniel, Trent, Rip (o seu vendedor de drogas) e Julian. Durante a sua curta estadia, Clay vai a festas, droga-se, faz sexo casual e tem flashbacks constantes do passado, de um passado onde ele, Clay, era normal e feliz. Clay e os seus amigos são filhos da elite norte-americana que domina em termos de poder económico e social, mas sem qualquer tipo de mínima noção em termos de educação adequada para os seus rebentos; uns estão separados e os filhos raramente estão com mãe e pai ao mesmo tempo, como é o caso de Clay, outros vivem num clima de constante traição matrimonial e há também aqueles pais que nunca estão por casa, pois andam ocupados a viajar à volta do mundo. 

Como referido no início, as drogas e o sexo são o prato forte do romance. Ao longo de cerca de duzentas páginas, o uso de cocaína é exaustivo e massivo. Todas as personagens do livro se drogam para se sentirem bem, para não terem de sentir ou preocupar com nada, pois afinal de contas, os pais podem-lhes comprar tudo, inclusive um hipotético futuro. Toda esta juventude vive num estado de apoplexia emocional, numa letargia que não tem cura. Clay é o único que tem consciência de que a sociedade está errada e que deve fazer algo para mudar, sem que tenha motivação para tal. Os flashbacks que nos são apresentados no livro incidem sempre na casa em Palm Springs que a família de Clay tem. Nessa casa, num passado não distante, os seus pais eram casados e viviam felizes e os seus avós ainda eram vivos. A partir da morte da avó e da separação dos pais, Clay é afectado para sempre. 

Less Than Zero é um livro algo chocante que retrata uma juventude sem qualquer tipo de valores ou objectivos na vida que possam ir para além de festas, sexo e cocaína. Na época em que saiu, foi uma obra bastante polémica (ainda o é) que dividiu a crítica literária. Não é agradável de se ler, é bastante repetitivo e cansativo. Porém, a forma que Bret Easton Ellis usa para criar imagens e ambientes são elementos suficientemente cativantes e merecedores da sua atenção.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

J.M. Coetzee «Disgrace»


O que restou de uma África do Sul pós-apartheid é uma temática controversa e demasiado sensível, cujas cicatrizes vão muitas vezes para além do que o ser humano é capaz de aguentar, tal é a profundidade das feridas. Muitos autores já exploraram esta África do Sul tumultuosa e ainda dividida, sem no entanto atingir o nível de crueldade e realismo deste poderoso romance, na minha opinião.

John Maxwell Coetzee realiza aqui um exercício sobre a desgraça, como o próprio título sugere. A personagem principal é David Lurie, um professor de 52 anos que ensina Poesia Romântica na Cape Technical University. David é um homem solitário e divorciado que recorre a prostitutas para satisfazer as suas necessidades sexuais, até ao dia em que Soraya, a prostituta habitual, deixa de o visitar. Através do seu egocentrismo, David lança o seu poder de sedução sobre uma das suas alunas, Melanie, acabando por ter uma relação puramente física. O primeiro momento de desgraça deste romance dá-se com a denúncia do caso à universidade. David, em vez de se defender, apresenta-se culpado e é demitido.

Após este incidente, David decide ir morar com a sua filha Lucy na sua herdade localizada no campo e tentar reatar uma relação pai/filha que nunca foi fácil. Lucy é violada por um grupo de criminosos negros e nada faz para os condenar, apesar de saber exactamente quem a atacou. Este é o segundo momento de desgraça para David, que tenta compreender as razões que levam a que a sua filha – lésbica – aceite o acto brutal a que foi submetida. Na realidade, Lucy funciona aqui como um exemplo do ódio racial que o apartheid criou; ela não apresenta queixas porque a vingança iria apenas alimentar mais o fogo, sentindo-se assim na obrigação de tentar equilibrar um pouco do mal e humilhação que os brancos fizeram aos negros durante o antigo regime britânico. Lucy é a metáfora que Coetzee usa para retratar o grave clima de tensão entre os negros e os brancos e os tumultos que ainda decorrem num país ainda em reconstrução física e psicológica.

Disgrace (editado em Portugal pela D. Quixote, com o título Desgraça) é um romance complexo, cruel e de leitura sensível que prende o leitor de princípio ao fim - note-se que Coetzee faz também aqui as suas habituais referências ao vegetarianismo e direitos dos animais. Recomenda-se vivamente que o leia primeiro e só depois veja a adaptação a filme por parte de Steve Jacobs, com John Malkovich no papel de David Lurie.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Chuck Palahniuk «Snuff»


Quem já leu os contos presentes em Haunted, sabe que pode esperar duas coisas do autor: temas com propensão a chocar e exploração sem limites de tabus sociais. Cassie Wright é uma rainha da pornografia que quer terminar a sua carreira em grande ao gravar o seu último filme com o recurso a seiscentos homens. A maior orgia do cinema pornográfico, portanto.

A narrativa é contada através do ponto de vista de quatro personagens, originando assim uma diferente forma de ver a realidade. Mr 600, também conhecido por Branch Bacardi e actor veterano, foi a pessoa que trouxe Cassie para a indústria pornográfica e também foi o primeiro a fazer sexo com ela num filme; Mr 172, Dan Banyan, é um actor da TV em queda que vê neste filme e em Cassie a oportunidade de voltar à ribalta; Mr 72 é um jovem que se apresenta com um ramo de flores e que acredita ser filho de Cassie; finalmente, temos a assistente pessoal de Cassie, Sheila.

A gravação desta longa-metragem terá a duração de apenas um dia e Cassie sabe os riscos inerentes da tentativa de, em 24 horas, fazer sexo com seiscentos homens diferentes: a morte. Ela vai tentar bater o recorde de Annabel Chong, que em 1995 fez sexo com duzentos e cinquenta e um homens (número intransponível até à data). Chuck Palahniuk é, para quem não sabe, homossexual assumido, o que não o impede de ter conhecimentos profundos sobre a pornografia heterossexual, mencionando nomes de filmes um pouco num estilo idêntico ao de Tell-All. A investigação que Palahniuk faz sempre sobre cada tema de cada romance seu é profunda e em bom estilo jornalístico, ficando sempre a sensação de que as comparações e alusões na narrativa são correctas e verídicas.

Ao contrário do que se poderia esperar num livro desta natureza, as cenas pornografia são quase inexistentes e deixadas sempre para segundo plano, preferindo o autor fazer referências da vida pessoal dos três candidatos, de Sheila e de personagens marcantes do séc. passado, como é o caso de Marylin Monroe. Cassie é descrita como uma espécie de ser inanimado, desumanizado, que quer apenas imortalizar-se e esquecer a vida de actriz. A exploração das mulheres nesta indústria, a temática da tentativa de incesto por parte do suposto filho de Cassie e o que o ser humano faz para se manter no topo num jogo de mentiras e aparências, são um dos pratos fortes do livro.

Neste livro fica a aprender coisas sobre, por exemplo, Marilyn Monroe, que usava o pseudónimo de Zelda Zonk para ter privacidade, que lia regularmente, que era culta e que para manter a beleza tomava drogas e se metia em banheiras de água gelada para manter o corpo rijo e perfeito. Chuck Palahniuk consegue criar ambientes de repulsa e transportar-nos para esses mesmos espaços, nomeadamente a sala dos bastidores que prima pela falta de higiene e abundância de gordura das batatas fritas de pacote. Apesar da pornografia ser um tópico que vende bem, Snuff é um livro com os seus momentos chocantes, sim, mas muito honesto e de bom valor.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

The Dillinger Escape Plan «Miss Machine»


Seguido de muito perto por You Fail Me dos Converge, este foi o melhor álbum de 2004. Por vezes, gravar em estúdio um grande álbum, é coisa que muitas bandas conseguem fazer, no entanto, poucas são aquelas que trazem o impacto e o caos do estúdio para a estrada, para o palco. Nesse aspecto particular, o quinteto norte-americano é um caso bem raro. Prova clara desse aspecto foi o concerto que deram no Festival Ilha Ermal de há seis anos atrás.

O som desta banda é frequentemente associado ao termo “mathcore”, sub-género musical do hardcore com influências da vertente mais rápida do mesmo – o grindcore –, rock tecnicista e compassos de bandas como Tool e Meshuggah. Os Botch e os Starkweather aparecem sistematicamente referidos como os criadores do estilo. Mas em Miss Machine e em todos os outros trabalhos que se lhe seguiram, há todo um conjunto de melodias pop, da costela industrial dos Nine Inch Nails e de Trent Reznor, do experimentalismo cacofónico dos projectos de Mike Patton (Fantômas, Mr. Bungle, etc) e claro, do psicadelismo da estrutura das canções dos Tool. Não é fácil fundir tanto estilo musical díspar, mas a perseverança e criatividade dão os seus frutos.

Miss Machine apresenta um som complexo, com bastantes mudanças de ritmo e intensidade, bem mais denso e tão ou mais extremo que Calculating Infitiny – “debut” de 1999. A grande diferença em relação ao registo atrás citado reside nas vocalizações mais limpas, nos tempos mais lentos, na clara influência do rock industrial dos Nine Inch Nails e em temas perfeitamente capazes de passar na rádio. Unretrofied e Setting Fire to Sleeping Giants são dois dos temas que surpreenderam os fás do anterior vocalista, Dimitri Minakakis, pela sua beleza pop e simplicidade estrutural, sem esquecer algumas das raízes. Nesta capacidade de tornar uma canção extrema e igualmente bela e melódica, Greg Pucciato leva vantagem sobre Minakakis, sem dúvida. E não será pelo facto de a banda inventar formas suaves de quebrar barreiras (preconceitos, leia-se) que qualquer mérito possa ser retirado aos rapazes de Jersey.

Os The End, outra banda editada pela Relapse Records, também encontraram espaço para criar um som diferente e original em Elementary, mantendo a sua base principal de seguidores. Voltando a Miss Machine e à questão dos temas ferozes da “primeira era 43% Burnt e Sugar Coated  Sour”, creio que os temas Panasonic Youth, Baby’s First Coffin, We Are  the Storm e The Perfect Design mantém intactos os reflexos involuntários e os espasmos instrumentais que caracterizaram o grupo. É toda esta amálgama de géneros musicais, escalas dissonantes, tempos e variações rítmicas, e o escape ao marasmo musical e previsível que se vai ouvindo que torna Miss Machine num disco perfeito e de referência futura para o rock.

Se nas décadas de 60 e 70 foram os Pink Floyd a ditar as regras da criatividade e fome de música abstracta, a primeira década deste milénio fica marcada pelo trabalho árduo da dupla Dillinger Escape Plan/Converge. Se Frank Zappa fosse vivo, tenho a certeza de que teria muito gosto em ouvir este trabalho. Nota máxima.  

10/10

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Chuck Palahniuk «Tell-All»


Chuck Palahniuk é um dos autores mais criativos das últimas décadas. Digo isto, porque poucos conseguem atingir o seu nível, acabando pelo calcanhar. Vai ficar na História da literatura do final do séc. XX e do início do séc. XXI até que a morte tenha a infelicidade de o levar. Depois de enterrado, restará um legado rico em contos e estórias fantásticas, chocantes, inovadoras e profundamente humanas, acima de tudo.

Até que Damned saia lá mais para o final deste ano, pode-se entreter com a colheita do ano passado: mais um grande ano para a literatura, de onde sobressaem facilmente Verão de J.M. Coetzee, Sunset Park de Paul Auster, Livro de José Luís Peixoto, A Máquina de Fazer Espanhóis de Valter Hugo Mãe e, pois claro, Tell-All de Chuck Palahniuk. Este último é mais uma agradável forma de desmascarar aqueles que têm tudo e aqueles que nada têm. Os que têm tudo, inventam todo o tipo de esquemas para que os restantes acreditem que eles realmente têm uma vida fantástica e que vivem num conto de fadas; aqueles que nada têm, acabam mesmo por nada ter, a não ser uma mente muito distorcida (em certos casos).

Palahniuk presta aqui uma homenagem ao grande cinema de Hollywood da primeira metade do séc. XX, mencionando massivamente actores, produtores, realizadores e outros famosos da época em “bom” estilo síndrome de Tourette’s: Mickey Rooney, Joan Crawford, Walter Winchell, Lillian Hellman, J.F. Kennedy, Jean Negulesco, Samuel Beckett, Sarah Bernhardt, etc, etc. A narrativa é-nos apresentada em tom “noir”, recriando peças de teatro (cada capítulo é-nos apresentado como “Acto ‘x’, cena ‘x’) e um grande filme que mistura ficção e História. Esta grande produção é descrita por Hazie Coogan, a criada doméstica da grande estrela do cinema Katherine Kenton, uma mulher artificial e extremamente obcecada pela imagem que passa aos outros. Coogan vai-nos contado como consegue preservar a imagem da Sra. Kenton e também como afasta os interessados no amor da sua ama. Pelo meio, há o charmoso Webster Carlton Westward III que conquista o coração de Kenton e Lillian Hellman, escritora de um musical que terá Katherine Kenton como estrela principal.

Após descobrir que Webster Carlton Westward III tem planeado o assassinato e uma autobiografia” best-seller“ da sua patroa, Coogan tentará arranjar formas de manter Katherine Kenton viva e de desmascarar o vigarista. Contudo, e como é apanágio em Chuck Palahniuk, nem tudo é o que realmente parece e dão-se bizarros acontecimentos ao longo da estória. Assim do nada.

Tell-All está longe de ser um livro para entreter e de leitura fácil. É um tributo ao "glamour" do velho Hollywood, escrito numa maneira muito própria para enjoar o leitor ao longo de páginas e mais páginas de cuspidelas de nomes e mais nomes de famosos do passado. O carácter das personagens do livro impede também o leitor de sentir qualquer tipo de simpatia ou empatia por elas. Um romance inesperado de um dos escritores mais extrovertidos da actualidade.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.