segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Philip Roth «Património»


Quando vimos ao mundo, são os nossos pais que nos ensinam a viver, a crescer, que nos ajudam a alimentar, dão-nos a papa, oferecem-nos gelados, dão-nos banho e protegem-nos do mundo. Acabamos todos por envelhecer, até ao ponto em que somos tão velhos e com tanta necessidade de nos protegermos, que precisamos de alguém que cuide de nós. É nessa etapa que nós, que uma vez fomos ensinados a gatinhar e a caminhar, que temos que ajudar os nossos pais, quando eles se tornam “crianças” novamente.

Philip Roth escreveu este poderoso livro sobre a vida e morte do seu pai, Herman, desde o momento em que este adoece repentinamente e deixa de ser ele mesmo. O pai Herman, um homem robusto e encantador, é confrontado com fortes dores de cabeça e decide consultar um médico, acreditando sempre que era algo passageiro e que ele seria mais forte do que o que tivesse de acontecer de mal. Essas dores de cabeça eram um tumor cerebral que, com mais uns exames aprofundados, se revela como um cancro. As hipóteses de Herman sobreviver são escassas e passariam por uma operação muito delicada e perigosa, com uma taxa de eficácia – sobrevivência – muito reduzida.  

Philip Roth e o resto da família vão esperando pelo melhor momento para contar ao pai a gravidade da doença. Quando confrontado com os factos, Herman e o próprio Philip e o resto da família decidem que a operação não terá lugar, preferindo poupar Herman a dias intermináveis em hospitais. O autor (des)creve-nos, por um lado, todo o inferno que o pai passa até chegar o dia da sua morte: perda de visão, de audição, de memória, dificuldades motoras e rotinas do dia-a-dia, como o banho ou as refeições, que o seu pai enfrentou; por outro lado, há o lado positivo da história: este acontecimento aproxima filho e pai numa relação de intimidade que parecia esquecida no passado. Desde o primeiro dia em que adoece, até ao que morre, Herman mostra uma dignidade exemplar, uma grande pessoa com outra também grande ao seu lado, Philip.

Várias referências judaicas são-nos relatadas ao longo do livro, o que torna ainda mais enriquecedora a sua leitura, visto que a religião judaica é um pouco reservada no que á sua exposição diz respeito. Património é uma reflexão sobre a fragilidade humana e o sermos confrontados com determinadas situações delicadas que, apesar de sabermos que podem ter lugar, preferimos ignorar. Philip Roth, durante a infância, certamente que tinha em como herói o Homem-Aranha ou o Capitão América, mas no final o pai tornou-se no melhor e no mais poderoso deles todos.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Stone Temple Pilots «Stone Temple Pilots»


Depois de, em 2008, a banda ter anunciado o regresso ao activo, as espectativas para um regresso categórico dos Stone Temple Pilots eram altas, há que admitir. Uma banda que nos oferece um Core, um Purple, umas Dead & Bloated, Creep, Vasoline - entre tantas outras -, acaba por criar uma relação de grande empatia com o ouvinte, há que admitir também.

O colectivo californiano liderado por Scott Weiland teve os seus momentos mais altos da carreira quando tocava (ou pelo menos era associado) ao fugaz movimento grunge, como todos sabemos. O impacto que Core teve no mercado discográfico foi enorme, (oito vezes disco platina) talvez porque apareceram no momento certo, talvez porque o disco era, de facto, muito bom, talvez por causa das duas hipóteses. Continuo a acreditar que, apesar da associação ao grunge, os Stone Temple Pilots sempre foram bem mais uma banda de rock ‘n’ roll com boas melodias pop… e nunca foram aquele grupo que sistematicamente se vestia com jeans rotos e camisas de flanela, pois as indumentárias preferidas recaíam no retro e num visual bem “limpo”, passe-se a expressão.

Em 2002, o grupo cessou actividades porque a situação que a banda vivia era insustentável: abuso contínuo de drogas pesadas, violência e trocas de acusações entre os membros da banda e baixo número de vendas apresentado por Shangri-La Dee Da conduziram ao fim precoce – mas que todos esperavam – do grupo. Após o fim, Scott Weiland passa a integrar os Velvet Revolver, um daqueles super grupos super chatos, até que Weiland anuncia, em 2008, o regresso dos Stone Temple Pilots. Em 2010, sai o homónimo da banda, Stone Temple Pilots. Este disco, supostamente, assinalaria o regresso em grande daquela banda que dominou durante uma década os tops e, pelo que a própria banda professava, o registo seria um rock ‘n’ roll pesado “à la” Core. Trocando por miúdos, era a parte dois do seu “debut”.

Contudo, ao fim de várias audições do disco, nota-se nada mais, nada menos que as melodias e ritmos que parecem pertencer a um disco de lado-B com um “rehash” forçado de linhas que caracterizaram o som original da banda. Between the Lines, o single de apresentação revela-se uma canção aceitável composta por guitarras rock e por aquela voz pop característica dum grande vocalista que Scott Weiland é, de facto. Até aqui, tudo bem, estão aqui muitas estruturas que se ouviram em Shangri La-Dee Da. Como é habitual, as bandas pegam no disco e acabam por escolher sempre para single as canções mais orelhudas e mais suaves, como é o caso desta Between the Lines, além de que esta banda sempre teve temas com boa propensão a passarem nas rádios e na MTV – apesar de não ser adepto disso, não tenho muita aversão a isso, sinceramente; os Radiohead e Nirvana são/foram uma dessas bandas. Então onde reside o problema deste álbum? A resposta é simples: Between the Lines dos temas mais pesados que vai encontrar neste álbum. Infelizmente, só Fast As I Can mantém o ritmo acelerado do single, pois os temas que lhe sucedem roçam quase todos o pop rock extremamente polido, optando pela estrutura demasiado simplista e repetitiva verso/refrão/”bridge”, embora o recurso a um pouco do country de  Bob Dylan seja aqui detectado.

Se a ideia era gravar um álbum ao nível de Core, a banda falhou estrondosamente; se a ideia era regressar em grande, o mesmo raciocínio se aplica; se a banda queria vender e criar um disco com melodias country e blues alegres e calmas, então aí Scott Weiland, Eric Ketz e os irmãos de Leo passam no exame com nota positiva. Há aqui demasiado “sol” e pouca “tempestade”, o que é pena.

5/10

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Paul Auster «The Brooklyn Follies»


Se há autores cuja popularidade corresponde e até ultrapassa o talento, um desses autores será seguramente Paul Benjamin Auster. Este norte-americano, nascido em Newark em 1947, tem vindo a construir uma carreira literária repleta de prémios e de obras repletas de sucesso, onde se podem facilmente destacar The Book of Illusions, The New York Trilogy, The Music of Chance, Invisible e este The Brooklyn Follies.

Focando-nos apenas em The Brooklyn Follies, a personagem principal Nathan Glass é um homem solitário, de cinquenta e nove anos, divorciado e que passou a vida inteira trabalhar no ramos dos seguros, uma das actividades mais lucrativas que existem nos Estados Unidos. Nathan regressa agora às suas origens em Brooklyn, doente com um cancro nos pulmões e com o objectivo de encontrar um fim tranquilo para a sua triste e miserável vida. Contudo, Nathan não tenciona suicidar-se e vai escrevendo muitas das loucuras e acontecimentos da sua vida no seu The Book of Human Follies.

Ironicamente, o plano de Nathan acaba por falhar. A nossa personagem rapidamente mergulha dentro do espírito alegre e caricato que o bairro de Brooklyn comporta, onde encontra o seu sobrinho Tom, brilhante aluno académico que abandonou os estudos para trabalhar como taxista e depois como empregado numa livraria de livros usados e raros. A vida de Tom é monótona. Tom é monótono. É o reencontrar de Nathan com Tom e o aparecimento misterioso de Lucy, filha de Aurora e sobrinha de Tom, que desencadeia a estória principal deste romance. Nathan e Tom embarcam numa viagem repleta de acontecimentos cómicos, trágicos e insólitos à procura do paradeiro de Aurora, uma mulher que acaba casada com um fundamentalista cristão. O viver novamente em Broooklyn e esta viagem acendem novamente o fogo que faltava tanto na vida de Nathan, como na de Tom – ambos renascem.

Temporalmente, The Brooklyn Follies passa-se durante as eleições norte-americanas de 2000 que G.W. Bush acabaria por vencer. Auster, um liberal, usa Nathan como espelho desse liberalismo democrata em oposição ao marido de Aurora, o fundamentalista religioso republicano que representa a maioria da sociedade norte-americana. Contudo, no bairro de Brooklyn – um “melting pot” de todas as nacionalidades e credos – o autor dá-nos a sensação de que a vida vale a pena ser vivida e que, apesar da vitória republicana, a liberdade não pode ser afectada naquele bairro.

O positivismo que Nathan e Tom recuperam acaba por tornar a obra muito optimista, por assim dizer, comparativamente a outros romances mais fatalistas que Auster tem no seu repertório. No entanto, o ataque ao World Trade Center acaba por ser uma tragédia e uma derrota para a personagem principal. Um livro com bastantes referências à liberdade social e intelectual norte-americana, cuja escrita é rápida e que dá uma vontade enorme de ler, ler e não mais parar até que a última página chegue.    

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Black Flag «Damaged»


O hardcore punk, segunda vaga do punk rock dos Ramones, Sex Pistols, Crass e outros grupos, passou pelas entidades Minor Threat, Bad Brains, Dead Kennedys ou Black Flag, citando apenas as mais famosas. Os Black Flag, da solarenga Hermosa Beach, Califórnia, foram uma das mais influentes bandas género, movendo milhares e milhares de pessoas ao longo dos Estados Unidos para assistirem aos seus concertos cheios de energia. A gravação de álbuns de grande impacto, como é o caso de Damaged, valeu-lhes o estatuto de banda de culto que têm nos nossos dias.

A década de oitenta dos Estados Unidos foi particularmente atribulada para quem não se identificava e conformava com o governo republicano de Ronald Reagan, eleito por dois mandatos seguidos de 1981 a 1989. Este autoritarismo extremista teve, no contexto musical e cultural, o hardcore punk (geralmente apelidado apenas “hardcore”) como inimigo número um, por assim dizer. A postura DIY – “do it yourself” – adoptada por quase todas as bandas de hardcore foi um dos elementos-chave para se espalhar a mensagem anti-autoritária dos grupos para os jovens, via “flyers” dos concertos e revistas que eram quase feitas à mão e impressas a preto e branco e discos que eram gravados nos próprios estúdios das bandas, sem recursos a editoras (cada banda era praticamente a sua própria editora).

Em 1976 Greg Ginn formou os Black Flag – referência à bandeira da anarquia – e, após várias trocas de membros, a formação Henry Rollins (voz), Dez Cadena (guitarra), Robo (bateria) e Charles Dukowski (baixo) gravou Damaged, gravado e lançado em 1981 pela SST Records, a própria editora de Greg Ginn. Rise Above, marcada pelo ritmo rápido e pelas guitarras com distorção acima da média – comparativamente a quase todas as outras bandas punk e hardcore punk da época - acabaria por ser a faixa do disco mais famosa e mais cantada nos concertos: “We are born with a chance / Rise above! / We're gonna rise above! / I am gonna have my chance / Rise above! / We're gonna rise above!”. Apesar de Depression, Spray Paint, Thirsty and Miserable e a grande maioria das canções imprimirem velocidade ao disco, há também espaço para o som punk rock clássico de TV Party e para Damaged I, última faixa do registo, que viria a ser o prenúncio do arrastado sludgecore, presente e mais desenvolvido em grande parte a partir do álbum seguinte, My War.

A rebeldia de uma juventude que procura ter o seu espaço e liberdade, mas que no entanto é controlada por uma sociedade e governo opressor, marca a temática ultra sarcástica de Damaged, disco este que bebe influências do “inimigo” da época do hardcore: o heavy metal (muito presente na guitarra de Ginn). 1981 foi um ano importante onde se verificam registos assinaláveis dos Dead Kennedys (In God We Trust, Inc), Minor Threat (os dois EPs Minor Threat e In My Eyes), ou D.O.A. (Hardcore ’81). Não obstante isto, Damaged é memorável, genuíno e obrigatório na discografia de todo o amante de rock.

9.5/10

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Valter Hugo Mãe «o remorso de baltazar serapião»


“Estou muito aflito. É profundamente chocante receber este prémio desta forma. Estou habituado a pensar na escrita como um exercício de solidão e hoje sinto-me muito acompanhado”, afirmou o Valter Hugo Mãe quando recebeu o Prémio Literário José Saramago de 2007. O romance o remorso de baltazar serapião não só lhe valeu este importante prémio da literatura portuguesa, mas também acabou por tirar Valter Hugo Mãe do anonimato – ou valter hugo mãe, como o autor gosta de ser tratado.

A leitura de o nosso reino (2004) já tinha deixado excelentes indicações sobre este jovem escritor e era apenas uma questão de tempo até que o mérito e o talento lhe fossem reconhecidos. E foram, felizmente para a nossa cultura.  Esta obra tem lugar num Portugal medieval marcado pelo feudalismo cheio de miséria, medo religioso, e relações sociais e afectivas disfuncionais que esse período comportou. Baltazar, a personagem principal – baltazar, com letra pequena, como todas as personagens no livro – vive numa pequena casa onde a vaca Sarga tem tanta ou mais importância que a sua mãe, trabalhando em ofícios duros típicos da classe baixa da idade medieval.

A vida de Baltazar muda quando conhece e se casa com Ermesinda, uma mulher cuja beleza era tanta que o ânimo e modo de estar na vida de Baltazar acabam por mudar drasticamente para melhor. A situação altera-se por completo quando D.Afonso, o senhor feudal, exige a Baltazar que todos os dias a sua esposa o visite na sua casa para efectuar alguns trabalhos. É nesta altura do romance que a nossa personagem principal tem ataques de ciúmes e passa a ter a relação que o pai tem com a sua mãe: violência para além do que podemos imaginar, descrita com um realismo assustadoramente chocante (“Pé torto, mão para o ar, braço colado ao peito, outra mão nenhuma, olho só buraco”), através duma linguagem rude e arcaica.

o remorso de baltazar serapião simboliza não só a forma brutal como os homens tratavam as mulheres na era medieval, mas pior que isso, a forma como as mulheres ainda hoje são tratadas. Baltazar é todos aqueles que no dia-a-dia aparentam um comportamento dito “normal” e que na sua privacidade com a esposa acabam por a tornar numa autêntica Ermesinda. Este “tsunami”, como José Saramago definiu, recupera alguma da horrível violência e escuridão presente em Memorial do Convento. Porém, e sem entrar em comparações com o falecido Prémio Nobel, a leitura desta obra é terrivelmente recomendada e essencial.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

José Luís Peixoto «Morreste-me»


José Luís Peixoto lançou recentemente o seu Livro, porém, deu-se a conhecer com Morreste-me, redigido entre Maio de 1996 e 1997. O primeiro capítulo foi publicado no suplemento juvenil do Diário de Notícias, DN Jovem, a 7 de Maio de1996. Na sequência de um prémio atribuído pelo instituto Português da Juventude e do Clube Português de Artes e Ideias, o texto integral foi incluído na Colectânea de Textos Jovens Criadores 98.

Morreste-me guarda dentro de si a enorme tristeza de quando se perde uma pessoa muito, muito amada, de quando nos despedimos de quem nos ensina a gatinhar, a comer, a fazer os trabalhos de casa, de quem nos ensina a viver: o nosso Pai. A memória do Pai está presente em todas as páginas deste livro com uma emoção, com uma ternura, com uma alma, com uma intensidade, com um choro, com carinho, com nostalgia, com palavras, palavras, palavras, palavras que marcam, que entristecem, que fazem chorar. A infância, o crescer, os dias com o Pai que está bom de saúde, o Pai que já não está mais bom de saúde e que já está no hospital, as horas incontáveis que demoram anos a passar no hospital, a dor, a esperança, as boas e as más memórias passadas com o Pai. Até ao dia em que o corpo do Pai deixa de existir e só a alma vive.

“Mas a memória guarda-me o teu cheiro, as tuas mãos e o teu sorriso. Olho ao espelho e vejo o teu nariz. Olho para as mãos da mãe e vejo as tuas unhas. Estás em nós e eu estou em ti. Eu jamais seria eu sem a tua presença constante na minha vida”. É difícil  encontrar tanta emoção num livro tão pequenino. Mas ele é grande, muito grande. Muito grande.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

António Lobo Antunes «Tratado das Paixões da Alma»


Tratado das Paixões da Alma é o primeiro romance da trilogia apelidada de “ciclo de Lisboa”, composta por A Ordem Natural das Coisas e A Morte de Carlos Gardel. Este ciclo comporta a infância e adolescência de António Lobo Antunes e a sua vida em Benfica, Lisboa, recheada de lembranças dos seus amigos e da relação que tinha com os seus familiares, acontecimentos que marcaram o autor e que o mesmo nunca mais esqueceu.

Homem, inicialmente assim apresentado, é um indivíduo que pertence a uma organização terrorista e que se encontra preso a prestar declarações perante o “cavalheiro” e pelo Juiz de Instrução, de seu nome Zé. Ao largo da estória, o Homem revela chamar-se Antunes, e mais tarde António Antunes, sendo que o Juiz de Instrução tem o nome de Zé. A primeira conclusão que se pode retirar, é obviamente que Tratado das Paixões da Alma tem como personagem principal o próprio autor, intercalando os parágrafos com Zé e com outras personagens (algumas da rede terrorista: Sacerdote, Artista, Estudante, etc), ainda que durante a grande parte das páginas haja um parágrafo para o Juiz e outro para o Homem, respectivamente.

Se António (Lobo) Antunes é o Homem, Zé, o juiz, poderá ser o seu grande amigo já falecido José Cardoso Pires. Apesar de durante o livro todo não surja qualquer tipo de referência a “Cardoso” ou a “Pires”, não devemos excluir a possibilidade de que José Cardos Pires seja mesmo a personagem Zé, o Juiz: José Cardoso Pires aparece muitas vezes nas crónicas de Lobo Antunes como “Zé” e sempre tratado com um enorme carinho. A existência de uma rede terrorista e de Zé e António Antunes passarem o tempo na esquadra, serve apenas de pano de fundo para as lembranças de infância e adolescência que ambos partilharam em Benfica, sendo este sim, o verdadeiro tema do romance. 

Zé e os seus pais são os caseiros duma quinta que pertence ao avô de Antunes, onde também vive António e os seus pais, e durante o período em que Zé e António conviveram, apercebemo-nos de que havia uma grande amizade entre os dois – melhores amigos do mundo -, onde não faltaram travessuras e situações verdadeiramente cómicas, escritas numa linguagem muito própria a que o autor já nos habituou: “- Repara no que o teu Avô me fez à boca, nota só o inchaço da gengiva, lamentou-se o meritíssimo a exibir o beiço ao Homem, dobrando-o, com os polegares, no sentido do queixo. Não me partiu um dente em bocadinhos por acaso, não me convides mais para fumar que o velho deixa-me em picado num segundo”

Tratado das Paixões da Alma, publicado em 1990, é um romance importante na vasta obra de António Lobo Antunes. A guerra colonial abordada de forma exaustiva nos seus prévios registos aparece aqui com pouca relevância, dando-nos espaço para conhecermos melhor o crescimento do jovem Lobo Antunes em Benfica e isso acaba por se tornar essencial na compreensão de um autor tão auto-biográfico como este.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Radiohead «OK Computer»


Dentro de um contexto musical norte-americano do grunge rock de Seattle e de bandas como Alice In Chains, Nirvana, Stone Temple Pilots, cujas vendas de álbuns atingiam números impressionantes em termos globais, o Reino Unido não conseguia apresentar uma resposta ao fenómeno da flanela e all-star. No entanto, havia uma banda no sul de Inglaterra que a pouco e pouco estava começava a cimentar a sua fama e qualidade musical: os Radiohead.

“Hits” como Creep ou High and Dry – tirados respectivamente dos discos Pablo Honey (1993) e The Bends (1995) – catapultaram a banda liderada pelo enigmático Thom Yorke para um patamar de algum estrelato e, acima de tudo e isso bem mais importante, para uma banda de rock alternativo/independente que geográfica e musicalmente afastada do noroeste norte-americano, apresentava discos com uma solidez assinalável – sem muitas entrevistas ou grande promoção por parte da banda, que apesar de estar em editoras “major”, sempre soube ser fiel aos princípios de anti-comercialismo dos Sonic Youth e Swans.

Em 1997 a banda lança finalmente aquele que é unanimemente reconhecido como um dos grandes discos da década de noventa: OK Computer. Aqui nota-se perfeitamente um aumento de intensidade e um ganhar de uma identidade muito específica da banda, na simples medida em que os Radiohead passam a soar iguais a eles mesmos, sem grandes cópias/colagens a outros grupos, como infelizmente se vai passando na indústria musical. As linhas que traçam esta importante obra cosem-se pelo pop melódico, pelo rock distorcido, pela experimentação e um pouco pela electronica, com bastantes alterações de ritmos durante as músicas.

Paranoid Android é, por exemplo, uma faixa que dificilmente encontraríamos nos anteriores registos de estúdio da banda, pois entra numa toada variadíssima recheada de “crescendos” e de quebras de ritmo alternadas com dois solos psicadélicos de guitarra, acompanhados por um registo vocal com grande presença, ainda que melancólico (aquela voz que bandas como Muse tentam copiar descaradamente). Karma Police quebra um pouco com a melancolia presente ao quase de todo o disco, a nível da voz e das letras, pois como o título indica, retrata o "karma" e as consequências das nossas acções, puníveis com uma polícia. O psicadelismo de Climbing Up the Walls e a melodia contagiante de No Surprises são outros exemplos de bons temas inseridos num álbum que aborda temas como a sociedade disfuncional, as políticas conservadoras do Reino Unido em particular e o consumismo desenfreado.   

OK Computer é, como referido atrás, um dos discos mais importantes da década de noventa e um registo musical demasiado importante para que seja ignorado ou ouvido menos que umas boas cem vezes. Cada audição revela novos pormenores, novas formas de se sentir o álbum com a mesma intensidade com que as mentes constituintes da banda o escreveram. Os cinquenta e três minutos de OK Computer oferecem uma viagem invulgar ao enigmático e peculiar mundo da música como arte.

9.5/10

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

José Luís Peixoto «Livro»


José Luís Peixoto faz parte de uma jovem geração de escritores portugueses que se caracteriza por ter ganho o Prémio José Saramago e, acima de tudo, por realmente se mostrar num patamar bem elevado naquilo que tem vindo a fazer, com obras que já igualaram – no mínimo – algumas das que o Nobel português escreveu.

Valter Hugo Mãe arrasa com o remorso de baltazar serapião (“um verdadeiro tsunami literário”, nas próprias palavras de José Saramago), Gonçalo M. Tavares realiza um grande exercício de precisão germânica com a tetralogia O Reino (Um Homem: Klaus Klump, A Máquina de Joseph Walser, Jerusalém e Aprender a Rezar na Era da Técnica) e José Luís Peixoto é dotado duma extraordinária capacidade de nos silenciar e fechar os olhos em Cemitério de Pianos, só para citar aquele que me parece ser o seu melhor registo.

Livro é um livro que se distingue dos anteriores de José Luís Peixoto, na medida em que a temática utilizada na obra incidir num passado que se está a repetir no nosso presente: a emigração portuguesa, uma temática que se distancia um pouco do ambiente de fantasia, vida/morte ou “fim do mundo” presente em livros como Uma Casa na Escuridão ou Nenhum Olhar, entre outros. Num ambiente rural duma pequena aldeia do interior de Portugal, vivem Ilídio e Adelaide e o amor proibido de ambos, preso pelas regras sociais da época; nesta primeira parte do livro, é retratado o Portugal miserável, triste e preso ao regime fascista que limitou o crescimento do nosso país e que tanta dor causou aos seus habitantes e que levava, sobretudo na década de sessenta e setenta, a que as pessoas emigrassem em especial para França, tal como Ilídio e Adelaide fazem na obra.

A segunda parte do livro baseia-se na felicidade que foi o fim do regime salazarista e a felicidade que a revolução de 25 de Abril em 1974 trouxe aos habitantes e também ao nosso narrador que, curiosamente, nasce em Abril de 1974. Este narrador transmite ao largo de todo o livro uma sensação de que muitos dos acontecimentos narrados são autobiográficos: este narrador (ausente, diga-se de passagem) nasce em 1974, tal como José Luís Peixoto; a aldeia em questão parece ser mesmo Galveias, de onde o nosso escritor é natural; as personagens presentes existiram de facto e os pais de José Luís Peixoto também foram emigrantes em França que regressaram a Portugal.

É uma escrita que sem colocar totalmente de parte os cenários de miséria e sensações de estupefacção que provoca, se revela bem mais alegre, rápida e menos confusa, chegando ao ponto de o escritor de brincar com o leitor através de situações e jogos de palavras hilariantes que muitas vezes surgem do nada. Embora a temática do regime fascista seja predominante, Livro não envereda pelo neo-realismo de Dinossauro Excelentíssimo de José Cardoso Pires ou A Cidade das Flores de Augusto Abelaira. Recomendado a todos aqueles que seguem o apaixonante trajecto literário que José Luís Peixoto partilha connosco.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Ricardo Adolfo «Mizé - Antes Galdéria que Normal e Remediada»



Algures nos arredores de Lisboa, vive o homem que sonhava ter a mulher mais atraente do mundo, daquelas capazes de impressionar todos à sua volta, e vive também a mulher que sonhava em ser cobiçada por todos os homens à sua volta. Numa sessão de sexo dentro de um automóvel, Palha pergunta a Mizé se quer casar com ele e Mizé, confusa, responde-lhe com uma pergunta: se a quer “comer” para sempre, ou se quer mesmo casar-se, visto que para a primeira opção o casamento não era obrigatório.

Escrita por Ricardo Adolfo, esta sátira à classe baixa portuguesa dos subúrbios é, muito honestamente, das coisas mais interessantes e que mais prazer de ler me deu nos últimos tempos. É um romance extremamente bem escrito, muito simples, que narra as peripécias de Mizé, uma mulher que, tal como o título indica, faz de tudo para ser famosa e rica, não olhando a meios para tal e que acaba por se casar com Palha, um vendedor de batatas fritas que deixa a casa dos pais para morar e ter uma vida com Mizé, o amor da sua vida. Para celebrar uma suposta promoção no trabalho, Palha decide alugar um “filme de putas” (tal como está escrito na obra) e festejar com os amigos do café local onde se costuma reunir e até aí tudo estava perfeito, pois todos, inclusive Mizé, tinham acredita na mentira. 

Mas a vida de Palha nunca mais seria a mesma, pois na cassete pornográfica estava nada mais, nada menos que a própria Mizé, aquela mesma que “ele tinha de ser seu dono e senhor. Ele tinha de a ter em casa, na cama, na cozinha, fosse onde fosse, mas ele tinha de a ter, e de preferência só para ele.”. A partir daqui, Palha vai descobrindo que não conhecia tão bem a sua esposa como julgava conhecer, e que havia mais pessoas com quem Mizé tinha privado, a começar por alguns dos amigos do Café. As peripécias que a partir deste ponto se seguem acontecem numa verdadeira espiral descendente, plena de situações e reviravoltas caricatas e com um humor hilariante, ao bom estilo de Porno, de Irvine Welsh.

A escrita de Ricardo Adolfo caracteriza-se por um ritmo rápido, divertido e invulgar, de certa forma, repleta de calão, incoerências gramaticais e expressões tipicamente portuguesas que não agradam a todo o tipo de leitores; à primeira vista pode parecer uma tentativa fácil e rude de vender, mas há muito, muito tempo que o vernáculo (quando bem aplicado e não gratuito) se tornou arte. Citando Valter Hugo Mãe, "A nova literatura portuguesa passa obrigatoriamente por aqui."

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

António Lobo Antunes «Conhecimento do Inferno»

 
Conhecimento do Inferno é a terceira obra do extenso catálogo de António Lobo Antunes a ser publicada e é também o livro que encerra uma trilogia iniciada com Memória de Elefante, seguida de Os Cus de Judas, terminada com este romance no curto espaço de um ano: 1979-1980.

A história acaba por se tornar estória e vice-versa, na medida em que – como é marca habitual do escritor – a narrativa se intercala com recordações e experiências vividas em Angola e no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, com diálogos com a pequena Joana (a segunda filha de António Lobo Antunes, nascida em 1973, ano em que o autor regressa a Portugal) e personagens e acontecimentos fictícios. Aqui o narrador é ao mesmo tempo personagem principal e também o autor da obra: António Lobo Antunes é o nome da personagem principal, apresentando-se tanto na primeira, como na terceira pessoa.

António Lobo Antunes embarca numa viagem solitária de automóvel desde o Algarve até Lisboa, no espaço de um dia, recordando através de bastantes analepses os momentos duros que passou na Guerra Colonial de Angola como tenente médico do exército português e todas as atrocidades típicas de uma guerra sangrenta a que assistiu, desde amputações, partos e outros vários tipos de cirurgias que lhe deixaram claras marcas até hoje. A forma como a psiquiatria em Portugal e particularmente no Hospital Miguel Bombarda funcionava na época em que regressa de África, onde iniciou a carreira de psiquiatra, é o segundo ponto de foco da obra. As pobres condições de trabalho e o tratamento desumano que os pacientes internados e tratados no hospital viviam - para além de situações caricatas como a de um noivo que, para fugir ao casamento, se tenta internar – são alvo de jocosas críticas por parte do narrador/personagem/autor em cenas que, por vezes, atingem o surrealismo.

Este livro causou enorme polémica, na medida em que o autor que recebeu ameaças por parte hospital em questão e de muitos psiquiatras que se sentiram incomodados com a realidade descrita em Conhecimento do Inferno, tornando esta obra ainda mais apelativa e essencial. Quem já leu Memória de Elefante e Os Cus de Judas, vai compreendê-la melhor, embora não constituam requisito obrigatório para descer um pouco ao inferno da alma e solidão que António Lobo Antunes nos propõe.