segunda-feira, 29 de agosto de 2011

«Bold Native»


Este é um filme sobre a libertação animal e sobre os movimentos activistas, ao invés de apenas mais um documentário sobre a opressão animal por parte dos humanos. Denis Hennelly, o realizador, criou um enredo para um filme independente que se foca essencialmente numa organização que luta pelos direitos dos animais, pessoas que arriscam a sua própria liberdade para defenderem aqueles que não têm voz, que são propriedade/objectos do homo sapiens.

Charlie é o líder e a voz de um movimento conhecido por Bold Native. Este movimento organizado está espalhado por todos os Estados Unidos e o seu objectivo é salvar o maior número de animais possível, visando um futuro onde os animais são tratados de forma justa e sem serem mera propriedade. O principal alvo a atingir neste filme são as grandes corporações e a forma como elas se socorrem de animais indefesos para conduzirem experiências atrozes e desumanos nos mesmos para um satisfação de uma população que, na maior parte das vezes, não faz ideia do que come ou de que determinado artigo vestuário/higiénico resultou da morte de gatos, por exemplo. Em Bold Native há exposição de maus tratos e até de execuções de animais, como seria de esperar, embora não em tão larga escala como muitos poderiam esperar; no entanto, as filmagens de animais em laboratórios e a exploração de galinhas e vacas em quintas sem condições mínimas de vida impressionam o olho do mais habituado a ver vídeos na internet de abuso animal.

Charlie e os amigos são descritos pelos media como “terroristas”, terroristas estes que perturbam o bom funcionamento de milhares de matadouros, laboratórios nas universidades, grandes multi-nacionais ou a indústria farmacêutica. Não obstante, são estes “terroristas” que expõem a miséria dos nossos pequenos amigos e que estão dispostos a ser presos por uma causa que consideram justa. O leite biológico que consome é oriundo igualmente de exploração: apesar de as vacas terem algumas melhores condições e de não sofrerem modificações genéticas, assim que não conseguem produzir mais leite ou envelhecem, vão directamente para o matadouro e sem anestesia. Paralelamente ao “terrorismo” do movimento Bold Native, há um enlace forte entre as personagens que se tratam como família, que tratam os pobres indefesos como família; Randolph, o pai de Charlie, curiosamente um CEO numa multi-nacional que explora animais, vê-se envolvido no salvamento do seu filho assim que o FBI o contacta para descobrir o paradeiro do filho e o informa das acções ilegais do mesmo. 

Bold Native é um bom exercício para a moral e para o coração daqueles que não se importam ou questionam de onde vem aquilo que comem e onde são testados milhares e milhares de produtos. O filme tenta transmitir o fim da escravatura animal e da ganância humana em prol de um bem-estar artificial e cruel que sacrifica anualmente milhões de inocentes. O veganismo desta película é mais que uma mera utopia.

Realização: Denis Hennelly
Argumento: Denis Hennelly
Produção: Open Road Films

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

J. Rentes de Carvalho «La Coca»


José Rentes de Carvalho é um autor mais conhecido nos Países Baixos que no seu próprio Portugal. Nascido em 1930, em Vila Nova de Gaia, cedo começou a emigrar para vários países, até que em 1956 se estabeleceu em Amesterdão no ramo do jornalismo e ensino de Literatura. Ainda hoje reside em Amesterdão, onde ainda escreve.

La Coca é uma viagem auto-biográfica ao José Rentes de Carvalho que viveu no Douro e no Minho e que visitava regularmente a Galiza. Entre o Minho e a espanhola Galiza costumava e costuma haver tráfico de droga, e é precisamente neste espaço geográfico que a acção do livro decorre. Como ponto de partida temos um homem que nos anos 90 (a obra foi publicada originalmente em 1994) viaja de Amesterdão ao Minho para fazer uma reportagem de investigação sobre o tráfico clandestino de drogas e de outros artigos na época actual, recorrendo para isso ao reencontro de personagens do seu passado. Estes encontros com amigos da sua época desperta na nossa personagem principal um grande sentido de nostalgia e de ternura, relegando assim a investigação sobre a droga para segundo plano em prol do reviver da sua vida.

Apesar de ser catalogado pela editora como um romance, La Coca (cujo título o significado é enganador) é bem mais a história da vida do autor com personagens reais e outras que também reais, apenas com nomes diferentes; no Minho, José revisita o local onde cresceu e onde foi manifestamente feliz. Oriundo de uma família com poucas posses, o jovem José conviveu com muitas pessoas que dedicariam a sua vida ao narcotráfico minhoto com destino à Galiza, terra de muitos senhores da cocaína, haxixe e heroína. No entanto, e volto a frisar, a narrativa privilegia o recordar em detrimento deste circuito clandestino.

Com uma escrita calma e suave, J. Rentes de Carvalho preocupa-se em criar personagens que, fictícias ou verdadeiras, transpiram a sua realidade, descurando alongar-se em demasia sobre as vidas pessoais das mesmas, através de traços que já vimos num José Saramago ou nos contos de José Cardoso Pires, por exemplo. Devido ao seu carácter demasiado auto-biográfico, La Coca cai no risco de não agradar ao leitor que desconhece a vida do autor, daí que Com os Holandeses, Ernestina ou Tempo Contado (todos recentemente publicados pela Quetzal) sejam escolhas mais acessíveis.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

The End «Elementary»


Depois do caos do EP Transfer Trachea Reverberations from Point: False Omniscient e do álbum de estreia Within Dividia que se inserem na categoria mathcore, o melhor mesmo que estes canadianos teriam para oferecer dar-se-ia pelo nome de Elementary, em 2007. E que oferta…

Aquilo que os Dillinger Escape Plan, Converge, Nostromo, The Number Twelve Looks Like You ou até mesmo os Daughters na fase Canada Songs andavam a fazer, certamente que ajudou a criar o estilo musical mencionado no primeiro parágrafo: batida grindcore, grandes doses de noise, ritmos dissonantes e, screamocore nalguns casos, Fantômas noutras. No entanto, apenas as grandes bandas sabem se transcender em detrimento da rotina. Elementary exibe um grupo de jovens músicos que souberam guardar as qualidades técnico-musicais dos primeiros lançamentos, combinadas com um som menos frenético e exibicionista e uma franca enorme costela roqueira.

A primeira grande mudança facilmente constatável em relação ao registo prévio dá-se na forma de cantar de Aaron Wolfe; arranha as cordas vocais em vários momentos, mas os mais intensos e mais belos são quando esplendorosamente deita cá para fora uma voz limpa, suave e nasalada, ao bom estilo de um Tommy Giles Rogers (Between the Buried and Me), Jeffrey Moreira (Poison the Well) ou até mesmo um Chino Moreno (Deftones) naquele monumento intitulado White Pony. Animals ainda ameaça um regresso aos tempos em que a banda soava um pouco a Calculating Infinity, este mesmo tema desagoa nas melodias vocais e instrumentais que compõem o esqueleto do disco. Dangerous, a primeira faixa, choca com o mathcore e aproxima a banda de um tipo de rock tecnicista que muitos designam por math… rock e riffs bem mais do género metal progressivo que não abundavam em Within Dividia, soando também um bocado a Tool em determinados aspectos. A bateria de Anthony Salajko não só ficou muito bem gravada e produzida, como igualmente se aproxima daquele estilo peculiar e preciso que Danny Carey emprega em todos os álbuns.

Em Elementary tudo está longe de ser elementar. As letras são belas e todos os temas, ainda que obedecendo a uma estrutura que assenta numa toada lenta - alcança mesmo o pop/rock indie (The Moth and I) – mostram um sentimento invulgar nas vocalizações que podem induzir o ouvinte em erro no que ao instrumental diz respeito: o “problema” maior mesmo prende-se com a caixa torácica de Wolfe que ofusca os pormenores técnicos dos companheiros (In Distress, My Abyss). No meio de tanto tema de grande calibre, sugiro The Never Aftermath, Awake? e os nove minutos acústicos de And Always…

9/10

sábado, 13 de agosto de 2011

Death «The Sound of Perseverance»


Para quem não sabe quem Chuck Schuldiner foi, fiquem a saber que era o tipo com um talento fenomenal para tocar guitarra e com uma voz ímpar que dava concertos de sandálias nos pés. A juntar a isto, criou uma das bandas com mais sucesso comercial (que se pode obter no dentro do death metal) sem comprometer a integridade pessoal e musical, ao longo de vários discos na companhia de músicos dinâmicos que ia trocando um pouco ao jeito de Yngwie Malmsteen.

Spiritual Healing (1990) acaba, de certa forma, por encerrar um capítulo na ainda curta vida dos Death (deram-se a conhecer pelo nome de “Mantas”): a passagem do death metal mais primordial – sem qualquer tipo de adjectivação pejorativa, bem pelo contrário – para aquilo um estilo original, melódico, técnico e, acima de tudo, original. Um ano mais tarde, Human vê a luz do dia e torna-se num álbum clássico, a que se seguiram Individual Thought Patterns, Symbolic e este The Sound of Perseverance. A influência do rock progressivo/fusion faz-se sentir em larga escala neste período, de onde convém salientar que o pico da junção desta amálgama ocorre no último disco do (super) grupo. Apesar de Individual Thought Patterns ser um dos discos que mais adoro dentro de todos os géneros musicais e o meu favorito da banda (foi amor à primeira vista com The Philosopher), The Sound of Perseverance representa o expoente do death metal (progressivo) nos dias de hoje – e já se passou mais de uma década desde o seu lançamento. 

Já sem Gene Hoglan, Bobby Koelble, Kelly Conlon e com uma participação adicional de Steve DiGiorgio, Schuldiner recrutou músicos com quem viria também a trabalhar no seu projecto de power/progressive metal Control Denied: Shannon Hamm, Scott Clendenin e Richard Christy.  O disco abre com um curto solo de bateria, uns riffs de bateria descontraídos e um baixo a fazer lembrar aquelas notas graves de Human; a voz é cortante, forte e determinada, os dedos vão debitando nota, atrás de nota, escala após escala, até que as palavras se façam ouvir («Big words, small mind / Behind the pain you will find / A scavenger of human sorrow») e o ritmo acelere bastante num brilhantíssimo jogo de contra-tempos e puro exibicionismo instrumental, daqueles que fazem com que ao comprarem um instrumento, o devolvam no dia seguinte. Scavanger of Human Sorrow é das faixas de metal progressivo que mais prazer dão escutar e igualmente um grande cartão-de-visita para esta pérola dos anos 90. 

Um dos factores que ajudam a distinguir o som deste disco é o destaque dado à bateria. Embora os músicos mudassem praticamente de disco para disco, Chuck Schuldiner sempre gostou que os seus bateristas ocupassem as artérias principais do coração musculado de cada disco pós-Spiritual Healing. Sean Reinert (um dos responsáveis pelo supra-sumo Focus, dos Cynic), Gene Hoglan (agora nos Fear Factory) e Richard Christy são músicos extraordinariamente versáteis e criativos que ajudaram à criação e divulgação do nome e peso que os Death ainda hoje ostentam; contrariam, já agora, aquela falsa teoria de que o metal não existiu nos anos 90.  Referi atrás a palavra “progressivo” e retorno a ela: enquadrar este disco na mera categoria de “death metal” é errado. The Sound of Perseverance pega nas bases de temas como Lack of Comprehension, Mentally Blind, Flattening of Emotions e afixa-lhes os elementos já bastante progressivos de Symbolic, Crystal Mountain ou Perennial Quest. Jethro Tull, Fates Warning, Queensrÿche, Toxik ou Atheist merecem ser metidos ao barulho – não só neste disco. No entanto, e apesar de as referências atrás mencionadas serem total merecedoras de crédito, Schuldiner criou um som demasiado original e fascinante. Pormenores como os riffs “arabescos” e a lucidez de Flesh and the Power it Beholds (que harpejos de cortar a respiração…), a variação rítmica de Spirit Crusher, a beleza do instrumental Voice of the Soul e os solos esbeltos de A Moment of Clarity e A Story to Tell não se encontram facilmente num disco.

13/05/1967 – 13/12/2001.

9.5/10

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Dying Fetus «History Repeats...»


Uma banda com uma carreira invejável no espectro do death metal, como é o caso dos Dying Fetus, decidiu editar um EP com seis covers e um tema original. Este tipo de lançamentos acaba por vezes por ser arriscado, desnecessário na maioria dos casos, ridículo noutros. Até hoje creio que ninguém conseguiu perceber o porquê de os Six Feet Under insistirem nos Graveyard Classics; uma vez tem piada, porém repetir a façanha três vezes, sendo que na segunda há a reinterpretação na íntegra de um álbum de AC/DC, é piada de mau gosto.

John Gallagher, Sean Beasley e Trey Williams prestam tributo a algumas das maiores referências do death metal (e grindcore), ainda que algumas não façam parte dessa mesma elite: Cannibal Corpse, Pestilence, Dehumanized, Broken Hope, Napalm Death e Bolt Thrower.  Esperava encontrar aqui, por exemplo, algo de Suffocation, Cryptopsy ou Skinless – bandas cujos aspectos musicais se assemelham em parte ao trio de Maryland -, no entanto, todas as bandas escolhidas sofreram uma agradável mudança de roupa, com destaque para o blast beating insano de Unchallenged Hate (Napalm Death) do clássico de 1988, From Enslavement To Obliteration, a coerência e respeito pelo padrão mid-paced e solos de Unleashed (Upon Mankind) (Bolt Thrower), o baixo de Twisted Truth (Pestilence) – a audácia teria sido maior se a escolha tivesse recaído numa faixa de Spheres – e por último, claro, os guturais num dos clássicos dos clássicos dos Cannibal Corpse: Born in a Casket.

Rohypnol, o único original do disco, não é bem aquilo que se esperaria após Descend into Depravity; soa, na realidade, como uma tema para não ser levado a sério: são apenas trinta segundos de riffs simplistas, polvilhados com groove, “pig squeals” (sem cair no desastroso “bree, bree”) e um “finale” de doze segundos de algo que pode ser definido como “grindcore”. Posto isto, History Repeats… é um EP digno de registo para os seguidores da banda, ainda que não acrescente nada de significativo aos habituais álbuns de covers.

7/10

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Ricardo Adolfo «Depois de Morrer Aconteceram-me Muitas Coisas»


As expectativas em torno do sucessor de Mizé - Antes Galdéria que Normal e Remediada eram mais que muitas. Como explicado na crítica ao mesmo livro, o prazer de lê-lo foi tal que tinha mesmo que adquirir – neste caso ofereceram-mo – mais pérolas de Ricardo Adolfo para continuar a rir-me nos momentos mais desoladores, inclusive. A temática aqui abordada não lida com os filmes ou a fama de Mizé, optando por explorar um dos temas actuais da sociedade moderna: a emigração.

Ricardo Adolfo nasceu em Angola no ano da Revolução portuguesa, viveu em Macau, Lisboa, Londres e presentemente vive em Amesterdão. Temos portanto um autor que ao abordar esta temática da emigração certamente que escreve sobre caminhos que conhece perfeitamente, em especial numa altura em que cada vez há mais casos de emigração no em Portugal e por essa Europa fora. O livro retrata a emigração de uma família da “terra” para a “ilha” e todas as peripécias e dificuldades que passam nesta mesma “ilha”; o autor desvenda que “terra” é Portugal mas escusa-se a identificar a suposta “ilha” de forma directa. Fica perceptível que essa ilha é o Reino Unido quando Adolfo refere que lá se conduz pela esquerda e outros aspectos culturais/sociais típicos do Reino Unido (o peixe frito, as grandes comunidades chinesas e indianas, chá, etc).

Brito, o personagem principal, e Carla, mudaram-se há poucos meses para aquele país em busca de condições mais favoráveis de vida, deixando para trás um Portugal decadente também ele habitado por imigrantes. Na companhia do filho, Brito e Carla vivem num quarto minúsculo, com meia dúzia de talheres, dois beliches, um mini-frigorífico e pouco mais. A casa de banho é pública e utilizada por todos os habitantes do andar – todos eles emigrantes. A miséria em que vivem era já desde si uma boa imagem para ilustrar o que sucede com muitos emigrantes portugueses que acreditam em casas confortáveis e grandes regalias, sendo que quando despertam para a realidade, tudo se transforma num pesadelo. Nenhum dos personagens fala a linguagem da ilha e isso adensa de forma gritante os percalços que se lhes sucedem, em particular numa tarde em que vão passear e Carla compra uma mala de viagem e se perdem. Como não falam o idioma local, não conseguem obter indicações correctas e quando as recebem, acabam por se afastar ainda mais, são assaltados e visitam uma esquadra de polícia. Quando o casal e o rebento pensam que o pior já passou, o instante anterior era o Céu e o presente o Inferno.

Depois de Morrer Aconteceram-me Muitas Coisas não é hilariante, ao contrário de Mizé - Antes Galdéria que Normal e Remediada: debruça-se sobre uma temática que a maioria dos autores portugueses ainda não estão a explorar muito, mas que começa já a ser vista como matéria de inspiração – Livro, de José Luís Peixoto, aconselha-se vivamente. Para além da inspiração, certamente que por ser imigrante, Ricardo Adolfo tem mais experiência e um maior à vontade para pintar de negro a actual emigração portuguesa dos que possuem poucas habilitações literárias (como este casal) e até mesmo dos licenciados.  

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Hernán Rivera Letelier «A Arte da Ressurreição»


Em 1942 um novo Jesus Cristo foi colocado na Terra para livrar a Humanidade do mal e garantir a sua redenção dos pecados. Ao contrário do primeiro judeu nascido em Belém, Domingo Zárate Vera, conhecido como o Cristo de Elqui, foi dado à luz nos primeiros dias do séc. XX no Chile. Esforçado trabalhador nas minas da sua povoação local, este indivíduo passa a acreditar que é a reencarnação do redentor e decide difundir a palavra do Senhor após a morte de sua mãe, que lhe fazia lembrar a sagrada Virgem.

Esta longa peregrinação teve início nos anos 30 e contou com vários discípulos e virgens auxiliares que, por medo e falta de crença, abandonaram o Cristo de Elqui. No entanto, a determinação da personagem principal é tanta que prega a palavra de Deus munido apenas com uma Bíblia, uma sotaina, umas sandálias feitas de pneus nos pés e um saco de provisões mínimo. A humildade de Domingo Zárate Vega é tal que dorme no meio de arbustos, não aceita dinheiro pelos sermões e fornica apenas quando a mente assim o obriga. Sim, este novo salvador acredita que o saciar dos prazeres carnais é importante para o bem-estar das pessoas, e não raras vezes o encontramos na mata a aliviar a libido com as suas fervorosas seguidoras, ou a benzê-las de pé enquanto elas se ajoelham. Um Cristo moderno.

Quando chega ao norte do país, o Cristo de Elqui ouve falar de uma meretriz que é idolatrada pela população local devido à sua grande capacidade para ajudar os bravos trabalhadores das fábricas de salitre de La Pioja. Ao fim de um bom dia de trabalho, e por mais dorida e cansada que possa parecer estar, o coração e a cama de Magalena Mercado são tão grandes que albergam sempre espaço para mais um cliente. Esta «santa puta» - assim apelidada pela população e pelo próprio Cristo de Elqui -, é fiel seguidora da Santa Virgem, de tal como que ao lado da cama tem o seu bem mais precioso: uma estátua Virgem, pois claro. Mas, e para que o Senhor e a própria Virgem Santíssima não a excomunguem da vida cristã, Magalena tem sempre o cuidado de tapar a cara da virgem com um pano sempre que atende a clientela. 

O grande objectivo da vida do nosso seguidor do Padre Celestial (embora me pareça que a tradução mais adequada seria “Pai Celestial”, pois “padre” em castelhano significa “pai” e “padre” ao mesmo tempo) passa a ser convencer a santa prostituta a segui-lo pelos caminhos sagrados, contando o Cristo de Elquí com a boa fama que Magalena usufrui para conquistar mais seguidores. O autor deste romance, Hernán Rivera Letelier, um chileno nascido em 1950 que venceu já vários prémios e distinções – dos quais se destacam o Prémio Alfaguara e a nomeação para Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura de França -, criou um irónico e sarcástico romance que lida com o fanatismo cristão e com aspectos da cultura, política e sociedade no seu país. As personagens são fortes, determinadas nos seus modos de estar, numa época de miséria que foram os anos 30/40 do Chile, e vêm-se envolvidas em situações surreais e hilariantes, tal é a fluidez humorística da escrita de Letelier.

A Arte da Ressurreição é um romance latino-americano muito interessante e de elevado valor que peca pela tradução deficiente de Francisco Guedes de Carvalho: é incompreensível que exijam do leitor quantias são elevadas como se praticam em Portugal, quando o tradutor não consegue distinguir “à” de “há” ou, por exemplo, quando troca “fizesse” por “fize-se”.