quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

J. G. Ballard «Cocaine Nights»


O sul de Espanha alberga inúmeros ingleses que vivem em condomínios privados fechados aos próprios espanhóis. Nestas regiões forma-se uma Inglaterra de reformados e milionários que vivem um estilo de vida demasiado relaxado e repetitivo, isolando-se do mundo nas suas casas luxuosas e nas suas televisões por cabo. Estrella de Mar é um condomínio onde crime, violação, álcool, ténis, pornografia, drogas fazem parte do entretenimento, da quota mínima necessária para o bom funcionamento dum paraíso quasi-psicótico.  

Charles Prentice é o principal protagonista dum dos últimos romances do britânico J. G. Ballard, escritor famoso pelas obras Crash e Império do Sol e a profunda reflexão sobre a actual sociedade e criação de uma futurista transgressiva, profundamente utópica e violenta, onde o Homem se torna vítima da sua própria monstruosidade egoísta. O “resort” Estrella de Mar é mais um destes mundos alternativos onde o ritmo criminoso é usado para impor um certo sentido de sociedade organizada e perfeita, onde as infracções à lei são condição sine quai non para o dia-a-dia. Frank Prentice é encarcerado e acusado pela morte da família Hollinger, uma das mais poderosas e ricas da região e, embora todos acreditem na sua inocência, Frank prefere declarar-se culpado para o bom funcionamento da Estrella de Mar e dos outros condomínios que o rodeiam. Charles, arrastado até Espanha para compreender o porquê da estranha decisão do irmão acaba por conhecer Bobby Crawford, o principal responsável pela loucura e agitação do “resort”. As tais infracções referidas que têm de acontecer para que tudo funcione paradisiacamente. 

Antes de Bobby aparecer em cena, os habitantes de Estrella de Mar viviam dependentes de anti-depressivos, psiquiatras e privados de excitação, prisioneiros do aborrecimento e da televisão. Agora, compreendem todos que os crimes que Crawford comete são o seu messias, o único que lhes pode devolver uma vida e um mundo agitado, um mundo o qual só resulta da transgressão e perversão dos parâmetros estabelecidos como padrões do bom funcionamento social. Charles começa também ele a entrar nesta hipnose que o suga para o oposto daquilo que ele defende e, tal como o seu irmão Frank, ele apercebe-se pouco a pouco da utilidade do contrabando de drogas e de alguns incidentes trágicos – entende que todos têm que se sacrificar pelo bem-estar da comunidade. Ballard serve-se deste romance para pôr em questão a utilidade da auto-gestão social e de um mundo onde o colapso de uns é a prosperidade de muitos. 

O conceito é interessante, assim como certas personagens que, bem caracterizadas, entram bem na narrativa. No entanto, o romance revela-se demasiado extenso e pouco dinâmico na maior parte das suas páginas, tornando-se repetitivo e aborrecido ao fim de poucas horas. Ballard, como que também ele arrastado para o mundo de Estrella de Mar, afasta-se em demasia do leitor.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês. 

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

(<Ö>) «Okul»


À excepção de que é oriunda de França e um projecto de um músico apenas, pouco ou nada mais é conhecido sobre esta banda que tem um invulgarmente estranho nome. A edição do disco é limitada a 50 cópias feitas à mão que, a esta hora, devem ter sido vendidas a bom ritmo, dado o conteúdo das mesmas. Eu sou/fui um dos cinquenta sortudos.

O estilo musical de (<Ö>) insere-se algures entre a música ambiente e o drone minimalista executado através de uma guitarra e sons de fundo de grandes obras cinematográficas, alternando o belo e o assustador, gerando um ambiente de pura melancolia meditativa. Não parecendo pretender ser um álbum depressivo ou de qualquer conotação suicida, os sete temas giram à volta de uma viagem de sonho e fantasia negativa da sétima arte, de Okul até Under the Light of the Black Temple, como uma espécie de filme tipicamente Lars von Trier; a estrutura dos temas do álbum assenta em acordes distorcidos de guitarra que ganham progressão e feedback numa atmosfera sinistra, polvilhada com ecos psicadélicos e sufocantes que geram imagens de desespero e gritos mudos. Sem querer fazer comparações com bandas que aparecem associadas a este projecto, (<Ö>) não se enquadra facilmente no som de uns Earth, pois este artista francês é original no que faz – na medida do que a música ambiente/drone permite explorar, é claro.

Não é também um som noise (rock), mas facilmente se pára para pensar agora no que Thurston Moore e Steve Austin têm vindo a fazer e reparar no rico legado que estão a construir e naqueles grupos que, de forma directa ou indirecta, influenciam. Okul é como a banda sonora de um filme que cada ouvinte cria na sua mente, visto de preferência no silêncio da noite e com um copo de água na mesinha de cabeceira.

7.5/10

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Decapitated «Carnival Is Forever»


Passados cinco anos após a morte do baterista Witold "Vitek" Kiełtyka e das saídas do baixista Marcin Rygiel e vocalista Adrian “Covan”, Wacław Kiełtyka recuperou a banda e contratou Kerim "Krimh" Lechner, Rafał "Rasta" Piotrowski e Filip "Heinrich" Hałucha para a bateria, voz e baixo, respectivamente. A incógnita em relação ao que este quarteto poderia fazer em relação ao sucessor de Organic Hallucinosis era mais que muita.

Felizmente, o disco não defrauda ninguém e segue precisamente o caminho do death metal técnico, extremamente pouco ortodoxo, matemático e original que o grupo criou a partir de Nihility e tem vindo a aperfeiçoar. Aqueles que desistiram do grupo após Winds of Creation, ou que ainda alimentam esperanças de encontrar aqui. ou no futuro, um disco parecido com o debut, estão redondamente enganados: estes Decapitated continuam a derrubar cada vez mais as barreiras e as palas do metal, influenciados por algumas técnicas de Meshuggah e estruturas de outros grupos técnicos vanguardistas. Analisando o contributo dos novos elementos, salta à vista a capacidade de reproduzir a batida e o jogo de pés do falecido Vitek por parte de Krimh, um músico jovem (actualmente com 22 anos) e desconhecido das lides do metal extremo, mas com um talento e um grande sentido de dinâmica elevados. Ainda a tentar encontrar o melhor timbre para estas oito faixas está Rafał, o “rasta” que não tem ainda a caixa torácica de Covan, mas que apresenta-se aqui e em palco com um profissionalismo e determinação de meter respeito. O baixo, esse, continua bem entregue, até porque aquando do acidente do final de 2007, Marcin já tinha abandonado a banda.

Canival Is Forever não está ao nível do anterior registo Organic Hallucinosis, um dos trabalhos mais exemplares e excepcionais das últimas duas décadas no que ao death metal diz respeito, mas enche de sobremaneira as medidas do apreciador de longa data destes polacos. A rodela começa a girar ao som frenético de riffs técnicos, complexos e rápidos que a guitarra de Vogg emana em The Knife, claramente um dos temas mais directos e brutais do disco, marcado pela voz gritada e cuspida e acompanhado pela técnica e rapidez de Krimh. O solo de guitarra, o primeiro de vários presentes no disco, sobressai igualmente. Os riffs criativos prolongam-se através de United e começam a se impor e entranhar no tema homónimo, um dos mais lentos e progressivos – se se puder aplicar o termo – do disco; de facto, Carnival is Forever e A View from a Hole (esta aqui no final do disco) são na realidade um festim estimulante enquanto exemplo de coordenação entre as cordas e a bateria- bateria esta que Krimh explora ao máximo em termos de contributo nos seis minutos intensos de A View from a Hole.

Há obviamente outros temas a ressalvar, e longe de mim ignorar aqueles acordes e blast beats de Pest e Homo Sum (dois potenciais singles), mas ao longo deste Carnival Is Forever fica claro que apesar do enorme esforço e empenho que o novo vocalista aplica, o tom mais grave e encorpado de Covan e Sauron encaixavam melhor no som da banda que estes agudos berrados. Seria um exagero grave afirmar que Rafał "Rasta" não está à altura do microfone que segura: acredito que este é o primeiro dos vários bons trabalhos que se seguirão, por isso há que deixá-lo crescer e adaptar-se a um dos melhores grupos do actual panorama do death metal. 

Carnival Is Forever é uma bomba-relógio prestes a explodir a qualquer momento, construída com a mestria assinalável do “mestre” Vogg, um dos guitarristas mais brilhantes e originais que o heavy metal “criou” nos últimos tempos… aqueles shreds/solos loucos de 404 ainda ecoam cá dentro.

8/10

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Bracara Extreme Fest 2011


A quinta edição do Bracara Extreme Fest decorreu pela primeira vez no C.C. Braga Viva, nas antigas salas de cinema na parte superior do Braga Shopping, em pleno coração da cidade. Dividido em dois dias (sexta e sábado), o festival teve como principais destaques os Napalm Death, uma das bandas pioneiras do grindcore, os Decapitated que estavam de regresso a Portugal depois da morte do baterista Witold Kiełtyka, os belgas Aborted e os noruegueses Enslaved.

O evento decorreu em patamares distintos em termos de afluência do público, tal era o enquadramento do cartaz com um segundo dia mais interessante que o primeiro. Sexta-feira teve ainda o agravamento da desistência à última da hora por parte dos irlandeses Altar of Plagues, uma das bandas que tinha levado muitos dos presentes a adquirir o ingresso. De qualquer das formas, o festival arrancou com a curta descarga da fusão death metal moderno e grindcore dos desconhecidos Trocombix, grupo oriundo de Valência que acalorou e arrancou os primeiros aplausos tímidos da plateia, contrastando a actuação aborrecida dos, também espanhóis, Aathma. Os primeiros aplausos dignos de registo foram atribuídos aos suíços Zatokrev, pela forma psicadélica e arrastada que presentearam os presentes, destacando-se o tema ...Zato Krev

As duas bandas portuguesas da noite tiveram prestações também elas diferentes: por um lado, os Deskarga Etilika apresentaram-se, após muito tempo afastados dos palcos, com uma formação que conta agora apenas com um vocalista que, por mais que se tenha esforçado, denotou que o conjunto funcionava bem melhor com dois na voz, facto evidente nos temas de Apunkalipse Now, Xulos do Estado e Unidos pela Autogestão; os Holocausto Canibal, maior representante do panorama nacional do goregrind/death deram um concerto igual a si mesmos: fúria, humor negro e bastante movimento no palco que resultou no bailarico habitual dos que estavam colados ao palco. Aplaudiu-se não só as habituais Violada pela Motosserra, Empalamento, Amizade Fálica, mas também novos temas do terceiro álbum de originais que sairá em breve. O metal dos Daylight Dies pode não ter convencido o público que já esticava as pernas para a actuação dos Napalm Death, mas teve o efeito contrário naqueles que se deixaram seguir pela melancolia e mágoa que a banda empregou, com um registo vocal assinalável. A celebrarem quase trinta anos de existência, os veteranos de Birmingham estiveram à altura das expectativas, ainda que problemas técnicos ao nível da bateria tenham contribuído para uma menor entrega da própria banda e público. Construíram uma ponte entre 1987 e a actualidade, de Scum a Time Waits for No Slave e apresentaram ainda Quarantine, tema de Utilitarian a sair em Fevereiro. Destaques para Suffer the Children, Nazi Punks Fuck Off, Scum e Silence is Deafning.

O dia de sábado fica marcado pelas estrondosas actuações de Skepticism, Fleshgod Apocalypse, e Aborted, Enslaved e Decapitated, com destaques positivos para Process of Guilt (única banda nacional do dia) e Archspire e nota negativa para a actuação soluçada e demasiado tímida – por mais intimista que o seu som possa ser – dos chilenos Mar de Grises. Fleshgod Apocalypse, oriundos de Itália, brindaram o público com música clássica e death metal extremo e sinfónico, criando um ambiente de fantasia que ecoou pela sala alto e com bom som, interrompido pela depressão das letras do doom dos finlandeses Skepticism, que imprimiram um forte aparato visual e fúnebre ao largo de minutos que pareceram horas sem fim - “intensa” define bem a prestação.

De regresso ao nosso país estavam também os Aborted com (mais uma) formação renovada, da qual já só resta o frontman Sven de Caluwé. Meticulous Invagination, Dead Wreckoning, Sanguine Verses (...of Extirpation), The Saw and the Carnage Done, entre outros temas, confirmaram duas coisas: uma, que são verdadeiros profissionais em palco e que criativamente ainda vivem em demasia do passado. Quem vai trabalhando no presente e na linha da inovação são os Enslaved, que mesclam o prog/psicadélico com o black metal baseado na cultura viking e transformaram-nos numa descontraída e bastante competente actuação (houve tempo para uma reinterpretação de Immigrant Song dos Led Zeppelin), ainda que manchada pela dificuldade que as vozes limpas tiveram em se fazer ouvir em Ruun ou Giants. Allfadr Odinn, última faixa do setlist, foi dedicada aos amigos Decapitated.

Ultrapassada a tragédia que em 2007 tirou a vida ao irmão de Vogg e a capacidade para cantar de Kovan, o quarteto brindou os presentes com a melhor actuação do festival. Ainda a promoverem Carnival Is Forever e reinventando cada vez mais o death metal, The Knife deu início ao festim de shred e brutalidade (sonora). Ainda a recompor-se da chapada da primeira faixa, o público respondeu afirmativamente à nova formação e aos hinos da banda: Day 69, Winds of Creation, Mother War e Post (?) Organic. Os solos e os compassos da guitarra de Vogg e o trabalho de pés de Krimh ajudam a explicar o porquê de a banda obter tanto reconhecimento entre os aficionados deste género musical. Spheres of Madness, aquela que a meu ver foi o tema que mais impacto causou em todo o festival, encerrou uma actuação que incluiu quatro temas do novo álbum, mais os já referidos clássicos. 

Muito resumidamente, foi um fim-de-semana muito positivo. Há que destacar, uma vez mais, Ricardo e Tiago Veiga e toda uma equipa que organizou e ofereceu um grande final de 2011 com bastante peso e diversidade musical. Entretanto, e para os mais desatentos, divulgaram já muitas bandas que marcarão presença no maior festival do Minho, o SWR Barroselas Metalfest. 

Fotos gentilmente cedidas por Gonçalo Delgado:

Decapitated 

Napalm Death

 Aborted

 Enslaved

 Deskarga Etilika

domingo, 11 de dezembro de 2011

Josh Bazell «Beat the Reaper»


Josh Bazell tornou-se muito recentemente num valor seguro da nova literatura transgressiva, politicamente incorrecta, crua e com aroma a thriller norte-americana. O sucesso do seu debut está a ser tal que os seus direitos para adaptação ao cinema foram já adquiridos e teremos Leonardo DiCaprio no papel de Pietro Brnwa, um ex-membro da máfia italiana de Nova Iorque, agora médico num hospital em Manhattan.

Pietro chegou um dia a casa dos seus avós para os ver no chão brutalmente assassinados e jurou que teria a sua vingança. Para isso, conheceu o seu amigo Adam, filho de um membro da máfia de Nova Jérsia que o acolheu como seu filho e cedo o iniciou na vida de “hitman”; uma vez alcançada a sua vingança, Pietro continua a executar mais alvos até que chega a um ponto em que decide não ter mais condições para prosseguir com aquele estilo de vida perigoso. Ponto em que conhece o amor da sua vida. No entanto, e como já se viu em centenas de filmes sobre gangsters, nunca se pode confiar em ninguém e, uma vez dentro da máfia, é quase impossível dissociar-se da mesma. Em troco da sua liberdade, a personagem principal assiste novamente ao assassínio de alguém que ama, neste caso a sua namorada. Este foi o preço a pagar e o agora Dr. Peter Brown quer fazer novamente justiça.

A escrita de Bazell é meticulosa e agressiva, explicando detalhes e curiosidades sobre medicina que passam despercebidos ao dia-a-dia de qualquer pessoa, mas, por sinal, é possível construir uma faca com um osso alojado algures entre o nosso tornozelo, tíbia e o gémeo. A linguagem alterna entre o comovente e carinhoso e o rude e explícito, dependendo da situação em que as personagens se encontram. Enquanto doutor, Pietro/Peter é um médico muito ligado aos seus pacientes, sempre preocupado com os mesmos, apesar de ele mesmo não o admitir. Por outro lado, quando despe a bata, ele é um ser humano calculista que se orienta pelo sangue frio que corre nas suas veias. Bazell consegue estabelecer uma relação de empatia entre o drama da vida da sua personagem, desde os tempos em que os seus avós foram prisioneiros de Auschwitz, a aprendizagem gangster e a caça aos responsáveis pelas mortes daqueles que encheram de felicidade o coração de Pietro. Toda a narrativa decorre num só dia: a saída de casa e um dia de trabalho no hospital. A estória é alternada com “flashbacks” que recuam à vida criminosa e amorosa, constituindo estes momentos o ponto alto da obra e, acredite, vai ter pena de muitas situações que se passaram com o jovem Brnwa e o adulto Brown.

Beat the Reaper é uma corrida furiosa contra uma morte que pode aparecer em qualquer esquina ou em qualquer quarto do hospital. Os acontecimentos chocantes acontecem em cadeia e o final de cada capítulo cria um forte impacto - sempre inesperado - que o mantém agarrado ao livro num thriller genuinamente bem escrito e transgressivo. Por outras palavras, espere um argumento com várias voltas e reviravoltas a cada página que leia.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Mastodon «The Hunter»


Moby Dick, mares, czars, montanhas, o Homem Elefante, fogo e outros temas fazem parte do universo de fantasia alucinante deste quarteto georgiano, assim como suicídios e ataques cardíacos. Skye era o nome da irmã de Brann Dailor que cometeu suicídio, daí que Crack the Skye, o anterior disco, tenha sido escrito em honra dela, através de uma viagem intemporal no espaço. The Hunter é dedicado ao irmão de Brent Hinds, vítima de uma paragem cardíaca enquanto caçava. 

Depois da experiência ultra psicadélica e exageradamente progressiva do anterior disco, a banda cria aqui um disco muito mais directo de treze temas que remetem para a era Remission Blood Mountain, estabelecendo uma ponte entre toda a sua discografia. O disco arranca com Black Tongue (baseado nas línguas dos papagaios que são precisamente pretas) e a dinâmica instrumental tal qual os Mastodon nos habituaram numa década de existência: muitos riffs stoner, solos habilidosos, shred empolgante, baixo a bombear sangue para o coração musculado e uma bateria cuja batida é enfeitada com deliciosos pormenores ao bom estilo psicadélico da escola de Bill Ward, John Bonham ou Nick Mason, entre outros históricos. A juntar ao instrumental e se considerarmos que a voz não é um instrumento, não se fazem muitos discos de rock ‘n’ roll com vozes tão coesas e harmoniosas como as que se fazem ouvir das gargantas destes quatro músicos. É um dos pormenores que, enquanto banda mainstream e praticante de música alternativa, a vai distanciando da concorrência.

As vozes limpas são intercaladas alguma rispidez que a adrenalina que Blasteroid e a pujança de Dry Bone Valley (dois dos melhores temas do disco) impõe, ainda que na maioria dos temas as vozes soem polidas e orelhudas, fruto da excelente produção a cargo de Mike Elizondo. Há aqui vários temas a destacar. Há aqui treze temas a destacar e uma descrição faixa a faixa é desadequada. Scott Kelly (Neurosis) empresta a voz a Specterlight, aquela que é a faixa que mais alusões faz a Remission e Call of the Mastodon, os teclados tão, mas tão space rock intrometem-se no meio de Bedazzled Fingernails, os dedilhados das guitarras acústicas ganham um novo significado com Creature Lives, Hunter e The Sparrow – aquelas que, na minha opinião, são as canções mais épicas do disco. 

Liricamente, este registo reforça a ideia de que apesar das tragédias e horrores da vida, é possível manter sempre um grande sentido de humor e exercer o direito ao sarcasmo: «I killed a man because he killed my goat / I put my hands around his throat» (Curl of the Burl). Retomando o tema do rock mainstream e a sua qualidade, os Mastodon não têm absolutamente culpa alguma por venderem tantas cópias e serem tremendamente populares; aconteceu o mesmo com os Nirvana: não foram eles que foram ter com o mainstream, foi precisamente o contrário – note-se que entre os dois grupos não existem grandes similaridades em termos de sonoridade, exceptuando o amor pela música. 

Sério candidato a melhor disco do ano, The Hunter cresce a cada nova audição pois tem aquilo que falta a muitas bandas que tentam emular o som desta banda: originalidade e capacidade de escrever um disco homogéneo. Além do mais, serve de prova assim como a música e os músicos se podem reinventar sem comprometerem a integridade, derrubando barreiras e preconceitos rumo ao topo.

9/10

domingo, 4 de dezembro de 2011

Italo Calvino «Se Numa Noite de Inverno um Viajante»


«Estás para começar a ler o novo romance Se numa noite de Inverno um viajante de Italo Calvino. Descontrai-te. Recolhe-te. Afasta de ti todos os outros pensamentos. Deixa esfumar-te no indistinto o mundo que te rodeia. A porta é melhor fechá-la; lá dentro a televisão está sempre acesa. Diz aos outros «Não, não quero ver televisão!» levanta a voz, senão não te ouvem: «Estou a ler! Não quero que me incomodem!» não devem ter-te ouvido, com aquele barulho todo; fala mais alto, grita: «Estou a começar a ler o novo romance de Italo Calvino!» Ou se não quiseres não digas nada; esperemos que te deixem em paz.»

Assim começa o primeiro capítulo de um escritor e romance tremendamente invulgares. Nascido em 1923 em Cuba, este autor italiano foi uma das personagens que mais marcou o séc. XX na área da literatura, dedicando quase todo o seu tempo à escrita e à leitura; de facto, para Calvino, ler era tão ou mais importante que escrever e isso reflectiu-se na criação literária que exerceu desde 1947 a 1983, ano da sua morte e no qual é editado Palomar. Em 1979 escreveu este invulgar livro que se foca na paixão que usufruímos ao ler um romance e no qual o protagonista é precisamente eu, você e qualquer outra pessoa, ao largo de uma estória fictícia que engloba dez livros de autores inventados. Calvino dirige-se a nós por “tu” e cria um Leitor e uma Leitora que se conhecem e trocam impressões sobre romances que vão comprando e encontrando, embora estes nunca estejam completos: ao invés, encontram-se acabados mas interrompidos.

A narrativa deambula numa relação de extrema proximidade entre o escritor e o leitor, adquirindo o primeiro a forma do segundo por várias vezes, provocando e metendo-se connosco variadíssimas vezes. Outro pormenor importante é o facto de o título do livro se apresentar também ele incompleto, de certa forma, ou na pior das hipóteses a precisar de umas reticências; os dez romances que fazem parte da obra vão surgindo da interacção que Calvino cria entre o Leitor e a Leitora, da forma como ambos vão trocando ideias sobre romances que os seus autores não acabam ou simplesmente os leitores vêm-se interrompidos e obrigados a mudar para outro romance. Este curtos romances podiam perfeitamente ser contos; na realidade, Italo Calvino sempre se confessou ser mais um contista que um romancista. Os romances, por si mesmos, debruçam-se sobre diferentes temáticas e embora distanciados temporalmente, acabam por se interligarem.

Se Numa Noite de Inverno um Viajante foi escrito para si. É uma amabilidade que o seu autor cometeu ao prestar uma grande homenagem aos livros e à paixão que cada diferente livro desperta em quem o lê. Longe de ser um romance típico, esta arrojada obra desperta um certo sentimento de frustração em relação às expectativas que pode criar e, apesar de ser dirigida a todos, só alguns a vão apreciar.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Bret Easton Ellis «Imperial Bedrooms»


Vinte e cinco anos após o lançamento do clássico da literatura transgressiva norte-americana Less Than Zero, Bret Easton Ellis elabora uma sequela menos bem conseguida em termos de impacto e criatividade, não obstante a marca característica niilista, crua e directa que marca este romance daquele que já nos ofereceu As Regras da Atracção, American Psycho e Lunar Park.

Clay está de volta a Los Angeles depois de viver em Nova Iorque ganhando a vida como argumentista de séries e filmes, reencontrando os seus velhos amigos Julian, Rip, Daniel, Trent e Blair (estes dois últimos agora casados) ligados também à indústria cinematográfica, e Rain Turner, uma jovem misteriosa e ambiciosa que faz de tudo para entrar num filme que Clay está a gravar. Todos continuam muito bem de finanças e todos vivem em apartamentos e condomínios fechados luxuosos, fruto dos lucros do cinema e da sujidade e maldade que a envolve. Em termos de maturidade, continuam como se o tempo não tivesse passado por eles: exceptuando algumas mudanças físicas perfeitamente naturais, o comportamento de todos continua a ser irresponsável, traiçoeiro, festivo e converge sempre nas drogas. Apesar de serem amigos, a relação entre todos é tudo menos normal. Há sempre alguém que pode ser pisado e todo o cuidado é pouco.

Desde o primeiro dia em Los Angeles que Clay se vê perseguido e filmado por um estranho carro e por sms de números bloqueados que o vão ameaçando. Os alertas aumentam a partir do momento em que Clay, personagem principal, se envolve com uma actriz desconhecida, Rain Turner, numa relação amorosa perigosa, desconhecendo o guionista de que Rain é namorada de Julian e uma prostitua do perigoso narcotraficante/proxeneta Rip Millar. Mesmo após descobrir isto tudo, há uma vontade enorme de prosseguir um namoro impossível. Os riscos desta relação materializam-se pouco a pouco, à medida que certos amigos de longa data começam a aparecer mortos vítimas de tortura bárbara. Imperial Bedrooms (título de um tema de Elvis Costello de 1982) revela um lado que já tinha sido explorado anteriormente em Clay, que é a forma como este se posiciona sempre em primeiro e acima de todos, só que desta vez o seu narcisismo pode causar a morte dos que o rodeiam a si e a Turner. Por outro lado, há ainda algo que o une a Blair e o grande amor que outrora ambos nutriram; uma das falhas do romance reside no papel quase secundário que esta tem, participando muito pouco nos diálogos e nas narrações de Clay.

Vinte e cinco anos depois, o ódio de Bret Easton Ellis já não está tão focado na MTV, mas sim na actual tecnologia que sufoca o ser humano: iPhone, internet, exposição da vida privada das pessoas no You Tube e redes sociais. A obra está escrita num estilo noir e modernista capaz de captar a atenção dos novos leitores, no entanto e apesar disto, os que mais vão desfrutar dela serão com toda a certeza aqueles que esperaram mais de duas décadas por algo que não tem o mesmo impacto que o seu “debut”.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

«Wrecked»


Filmes que narram histórias de pessoas que sobrevivem a desastres de viação existem em doses industriais, assim como a sobrevivência das mesmas pessoas no meio da natureza onde não existe nada senão florestas e zero sinais de civilização. Wrecked é mais um desses filmes chatos e balofos que se gravam e não se sabe bem o porquê.

Adrien Brody, depois de ter experienciado um grande momento na sua carreira enquanto actor, entrando em grandes sucessos como O Pianista, Colete de Forças ou King Kong e A Vila, está a passar por um oásis cinematográfico, que por vezes acontece aos melhores; Predadores (uma extensão da franchise de 1987), The Experiment e Wrecked vão figurar no seu currículo como verdadeiras manchas-primas. Brody interpreta neste filme o papel de alguém que teve um grave acidente de automóvel e acorda com amnésia aguda, bastante ferido. Sem reconhecer os corpos dos outros passageiros, a personagem de Brody – cujo nome não é revelado – tem que arranjar modo de sair da viatura e sobreviver aos animais selvagens que começam a circundá-lo, na esperança de ir ter a alguma estrada ou povoação que lhe dê auxílio. 

Uma vez fora do veículo e com uma perna lacerada e imóvel, Brody sobe e desce a montanha à procura de alimentos crus (minhocas, formigas, e outras iguarias), bebendo água de riachos na companhia de um cão que o segue para todo o lado, inclusive quando Brody cai no rio que o arrasta durante largas centenas de metros até à foz. Nem Rex conseguiria ter o faro deste animal que acompanha Brody. No meio disto tudo, há um homem que aparece e tenta roubar o que se encontra na mala do carro e uma mulher que, não passando de uma alucinação, vai falando com o sobrevivente, levando-o a ataques de insanidade verdadeiramente mal encenados – tanto ele, como ela. A prestação dos actores faz lembrar aqueles filmes realizados por António-Pedro Vasconcelos, se bem que, bem, nem as mamas de Soraia Chaves iriam tornar esta experiência mais agradável.

Resumindo: um filme muito mau, sem argumento, drama ou algo que o valha. Fica a ideia de que o realizador gastou quase 99% do orçamento em Brody e se esqueceu de que 1% não chega para gravar uma película.

Argumento: Christopher Dodd
Realização: Michael Greenspan