terça-feira, 27 de setembro de 2011

«In Bruges»


Já tinha saudades de ver um bom filme britânico com estória e humor tipicamente britânicos. Este drama hilariante – apenas para quem gostar do referido humor – passa-se na Bruges medieval, soturna e turística como a conhecemos, onde várias coisas estranhas se podem passar. Dois assassinos são enviados para lá, após uns crimes cometidos em Londres, e a forma como percepcionam o seu passado, o actual momento e o futuro de ambos muda drasticamente.

De sangue frio, Ray (Colin Farrell) e Ken (Brendan Gleeson) dão vida aos silenciosos atiradores que vão para Bruges com a obrigação de manter um perfil bastante discreto enquanto as coisas arrefecem pelos lados das terras da Raínha; entretanto, Ken começa a visistar e a apaixonar-se pela cidade, ao passo que Ken despreza totalmente tudo o que existe por aqueles lados. A vida de ambos muda após Ken infringir um “código de conduta” (ética assassina): Ken, ao matar um alvo em Bruges, acaba por acidentalmente pôr cobro à vida de uma criança inocente. Ray recebe instruções por parte de Harry (Ralph Fiennes), o patrão de ambos, para liquidar o seu parceiro e é aqui que uma decisão tem que ser tomada. 

Visivelmente chocado e perturbado, Ray tenta suicidar-se com um tiro na cabeça, em plena praça pública; enquanto isto, Ken aproxima-se sorrateiramente de arma em riste pronto para rebentar com os miolos do amigo. Ambos se vêm chocados: Ray não acredita que Ken vinha para matá-lo e Ken fica estupefacto ao ver que o amigo de longa data se ia suicidar. Como nem um se mata, nem o outro mata, Harry vê-se obrigado e ir visitar Bruges para questionar Ken pela desobediência da sua ordem de execução e, eventualmente, fazer ele o trabalho do empregado. In Bruges tem aquele tom negro que as comédias britânicas costumam ter. Tem aquelas situações embaraçosas e surpreendentes que há muito me habituaram a soltar gargalhadas secas. Não é propriamente um drama e também não é uma comédia. É um meio-termo, se quisermos ver as coisas desta forma.

Do ponto de vista do realizador, Martin McDonagh (que também escreveu o guião) tem aqui o seu ponto mais alto da sua ainda curta carreira, arrisco eu. Os ângulos de câmara com que Bruges é filmada captam bem o desprezo que Ray sente pela mesma e a graciosidade e felicidade com que Ken a abraça. Para além disso, conseguiu criar uma narrativa paralela e bons diálogos com a dona do hotel onde as personagens se encontram hospedadas e um romance para Ray. Tudo em Bruges é calmo, à excepção das acções intempestivas que Farrell empresta ao filme e às risadas indiferentes que Gleeson solta. Sem estes actores, In Bruges provavelmente não teria o mesmo impacto.

Realização: Martin McDonagh
Argumento: Martin McDonagh

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Ernesto Sabato «O Túnel»


Visivelmente emocionado e emerso num choro de alegria, Ernesto Sabato abraçou o amigo José Saramago aquando da distinção de honra no III Congreso Internacional da Língua Espanhola em 2004. O escritor, ensaísta e pintor nasceu em 1911 e morreu este ano - a escassos meses de completar um século de vida - vítima de bronquite. Consigo deixou um legado de crónicas, quadros e uma profunda reflexão sobre o valor do Homem e a sua importância enquanto ser consciente e pensador. Entre as suas maiores obras encontra-se este túnel.

O Túnel aborda a vida do pintor famoso, de Buenos Aires, Juan Pablo Castel e toda a sua solidão e crise existencialista. Narrado sempre na primeira pessoa, o livro abre com a confissão de um crime de Castel, que se dirige ao leitor a contar-lhe que assassinou uma mulher. Após pintar um quadro onde figura uma casa à beira-mar e uma mulher espreitando à janela, Castel exibe-o numa casa de artes onde acaba por se aperceber que, para além das habituais figuras que povoam aqueles ambientes - que ele próprio despreza -, se encontra presente uma jovem bela que observa o quadro e o inquieta. A partir daqui, o nosso personagem fica obcecado por esta mulher e decide ir à procura da mesma na baixa da cidade; assim que a vê, o coração de Castel fala mais alto que o seu raciocínio e interpela María Iribarne e confessa-lhe, desesperado, que a deseja ter para si mesmo.

Como em muitos romances existencialistas, as personagens apresentam-se envoltas num clima de depressão profunda e têm dificuldades em exteriorizar os seus sentimentos e, acima de tudo, compreender o que os rodeia, desprezando-os quase sempre. Castel, obviamente perturbado e constantemente a reflectir sobre a sua condição humana, vive no seu mundo, no seu túnel, até que começa a sair e a ter relações com María, acreditando que ela é só sua e que mais ninguém a pode ter. Tal como o seu quadro - um dos pontos mais simbólicos da obra – María encontra-se num quarto que não é o de Castel; este quarto pode ser interpretado como um retiro que o próprio pintor procura e está ligado à casa de praia que a sua amante possui. Mergulhado em constantes desabafos anti-humanidade, Castel julga ver em María a saída do seu túnel, a sua salvação e esperança. 

O Túnel é uma obra de fácil leitura e ao mesmo tempo de lenta digestão. A escrita de Sabato é extremamente densa do ponto de vista psicológico e desoladora em termos humanos, criando personagens que buscam a felicidade quando já há muito que estão condenadas à dor que a solidão causa. A par deste romance, Sabato – o “irmão mais velho” de José Saramago - escreveu mais dois de forte impacto no mundo hispânico e europeu, apesar de ter dedicado grande parte da sua vida à pintura e a ensaios.   

domingo, 18 de setembro de 2011

«Pi»


Foi com um orçamento de 60 mil dólares que Darren Aronofsky se estreou no mundo do cinema. Muito antes de andar nas bocas do mundo com filmes que lhe gracejaram prémios e lhe permitiram trabalhar com alguns dos actores mais bem pagos de Hollywood, foi através de um filme indie que este – cada vez – mais surpreendente realizador se deu a conhecer ao mundo.

Como se se tratasse de uma materialização de sentimentos surreais de David Lynch e dos quebra-cabeças de David Cronenberg, esta película navega nos oceanos do thriller psicológico, explorando assim a mente humana da matemática. Max Cohen (Sean Gullette) interpreta um brutal e exaustivo papel na pele de um génio matemático que acredita que a natureza é composta por números e que a elaboração de gráficos com os mesmos conduz à criação de matrizes. Graças ao seu intelecto e ao seu super computador Euclides, Max dedica-se à descodificação do mercado de acções em busca de um número de duzentos e dezasseis dígitos que não lhe é revelado na totalidade porque o seu computador avaria perto do final do processo. A acção de Max não deixa indiferente um grupo de perigosas pessoas que querem obter o controlo dos valores. Paralelamente, Max vê-se envolvido com uma seita religiosa judaica que vê em Max um messias capaz de lhes revelar uma profecia sagrada; estes ortodoxos religiosos explicam a Max que o hebraico presente na Tora é similar à matemática e que ela contém também um número de duzentos e dezasseis dígitos que, uma vez descodificados, revelam a matriz enviada por Deus ao seu povo. 

Max sofre também de ataques de paranóia e ansiedade que lhe causam graves dores de cabeça e perdas de lucidez, obrigando-o a recorrer a forte medicação que ao aliviar-lhe o sofrimento, lhe causa desconforto e vício e alucinações sobre o que o rodeia e sobre o número de duzentos e dezasseis dígitos que pode ser a chave do universo. Estas cenas em que o actor alucina são fortes e ambíguas, deixando para a interpretação de cada um se determinadas acções ocorrerem de facto ou nem por isso; quanto mais Max tenta descobrir as matrizes, pior fica o seu estado de saúde, infiltrando-se o caos e a quási loucura no decorrer da narrativa claustrofóbica e surrealista.

Pi tem um outro ponto forte que são as filmagens totalmente a preto e branco. Mais em preto e com pouco branco, esta técnica de filmagem induz a dubiedade, o pânico e um grande sentido de atordoamento ao largo do filme, obrigando a uma lenta absorção da acção e a uma contemplação das imagens – algumas bem grotescas – para um compreensão razoável do desenrolar das acções matemáticas e delirantes. Parabéns, uma vez mais, a Aronofsky e aos actores/escritores que ajudaram à materialização do guião em filme e com tão escassos recursos.

Realização: Darren Aronofsky
Argumento: Darren Aronofsky, Sean Gullette, Eric Watson

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

«White Irish Drinkers»


Brooklyn, 1975. John Gray pinta o retrato de várias famílias irlandesas que imigraram para os Estados Unidos e sentiram as dificuldades de triunfar num país que defende apenas os seus ideais e faz a vida dura a quem aspira a algo mais que recolher lixo e trabalhar num restaurante fast food. No meio de tantas famílias temos a família de Brian (Nick Thurston) e Danny Leary (Geoffrey Wigdor).

Crescidos num ambiente familiar disfuncional e com pais que fazem parte da classe operária, Danny (o irmão mais velho) dedica-se a assaltar lojas e a roubar pessoas, vendo nisso o seu e o futuro de Brian que, ao contrário do irmão, tem um talento que esconde de todos e se sente mal ao seguir as pisadas do irmão. Stephen Lang e Karen Allen interpretam o papel dos pais, uns pais que esperam que os filhos se safem por conta própria e algo negligentes, embora Allen se mostre afável nalgumas cenas; Lang trabalha nas obras e vê na bebida o escape para todos os seus males e dificuldades, ponde constantemente de lado o futuro dos filhos, o amor da esposa e batendo com frequência em Danny. Apenas Danny.

Apesar do feitio duro de Danny, na realidade este é sensível e preocupa-se com o irmão desde que eram os dois pequenos e Brian tinha medo do escuro. Ao contrário do que lhe sucede com frequência, Danny não quer que o pai bata no seu irmão – embora se questione a razão de apenas ele levar porrada; acredita também que a criminalidade é o seu único caminho e sente-se preso à casa onde vive e ao pai severo que o agride. Brian, por outro lado, trabalha num cinema perto de sua casa e sente-se mal a roubar. No entanto, o enredo vai-lhe colocar uma questão que ele vai ter que escolher: Whitey, o seu patrão, arranjou maneira de trazer os Rolling Stones a actuarem no cinema e conta com Brian para controlar o dinheiro; Danny, ao saber do concerto e da facilidade que Brian tem acesso à receita do evento, engendra um plano para escapar com o dinheiro para bem longe de Brooklyn.

Como referi no segundo parágrafo, Brian tem um enorme talento. Na cave da sua casa, Brian é um talentoso pintor digno de frequentar uma grande universidade de artes; naquela cave e ao som do rock ‘n’ roll, Brian abstrai-se da agressividade e alcoolismo do pai, das infracções do irmão e da passividade da mãe. Naquele recanto da casa, há transcendência. Desinteressadamente, Brian acaba por enviar alguns dos seus quadros para avaliação numa universidade em Filadélfia que o contacta precisamente na altura em que este se sente pressionado e tentado a roubar o patrão e fugir com o irmão. A caracterização das personagens está bem razoável e nota-se perfeitamente que Nick Thurston tem futuro na sétima arte; no entanto, Geoffrey Wigdor carece de mais impacto enquanto criminoso. Lang, o actor que participou no “blockbuster” Avatar, oferece um sólido desempenho enquanto pai alcoólico.

White Irish Drinkers tem um título que não só descobrirá o porquê do mesmo ao longo do filme, como se aperceberá que é impossível de traduzir para o português. Enquanto drama independente, este filme é um registo agradável que tem na prestação de Thurston o seu ponto mais forte, falhando um pouco na representação da época em que a acção decorre e no já referido papel de Wigdor. 

Realização: John Gray
Argumento: John Gray

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Raduan Nassar «Lavoura Arcaica»


Com apenas um único romance editado em 1975, Raduan Nassar pode ser reconhecido como um dos maiores escritores brasileiros mais influentes do século passado, a par de Clarice Lispector e João Guimarães Rosa, entre outros. Este filho de imigrantes libaneses, nascido em 1935 no estado de São Paulo, demarca-se, de certa forma, dos demais escritores brasileiros atrás mencionados, pois a sua obra ficou acabada, na medida em que foi por iniciativa própria que o mesmo deixou a literatura.

Lavoura Arcaica é um livro que me surpreendeu bastante pela sua ligação à poesia; ou melhor, pela forma como cruza a poesia com a prosa, tornando-os num só elemento. Com fortes ligações a parábolas da bíblia, a escrita de Nassar assenta numa fruição e fluir de luta de emoção vs razão, de moral vs satisfação pessoal e o quebrar das regras familiares. André, o personagem principal, é um jovem que vive numa família que cultiva para viver e que tem no seu pai uma figura que defende com unhas e dentes o dever que todos os familiares têm: o de se manterem juntos na lavoura; na vida. Com uma união assente em fortes laços familiares e grande entreajuda, alicerçada no respeito pela paciência, todas as dificuldades são ultrapassáveis e o pão nunca faltará na mesa. 

No entanto, André é diferente dos seus irmãos e apesar de respeitar a filosofia de vida do pai, prefere emancipar-se e conhecer o mundo para além do dia-a-dia de labor camponês. Ele experimenta as dificuldades e prazeres que os outros locais afastados do seio da casa da família lhe oferecem, indo contra a razão imposta pelo patriarca. Para além de querer conhecer o resto do mundo, André apaixona-se pela sua irmã Ana com quem acaba tendo relações incestuosas. André não aceita a forma como a sociedade (nesta caso o pai) e a tradição/lei deitam por terra o seu sonho de viver com a sua amada irmã, entrando assim numa espiral descendente que o leva ao desgaste e pobreza, até que é salvo pelo seu irmão Pedro, que o traz novamente até casa.

O livro divide-se em duas partes: A Partida e O Retorno, numa alusão à parábola bíblica do regresso do filho pródigo. No seu regresso, André compreende que tem que aceitar os ensinamentos do pai, mesmo que isto lhe cause amargura, despoletando acontecimentos trágicos. Lavoura Arcaica tem bastantes referências a variadas culturas e religiões – árabe, grega, muçulmana, cristã, judaica, etc – e assenta numa escrita complexa, influenciada pelo modernismo, e poética claramente invulgares, tornando a obra num excelente exercício de simbologia.

domingo, 11 de setembro de 2011

«Touro Enraivecido»


A brutalidade no ringue não pode ser transposta nunca para o exterior é algo que todo o boxista amador sabe e que tem que respeitar, caso contrário, pode sofrer penas pelas associações de boxe e pior ainda, perder os mais próximos. Jake LaMotta é um dos casos tristemente mais famosos de um boxista fenomenal que não distingue a violência dos dois punhos na arena e se transforma num touro à deriva sem respeito ou pena pela família e amigos.

Conhecido por “Touro Enraivecido”, LaMotta nasceu no Bronx, Nova Iorque, em 1921 e teve o seu período áureo nos anos 40 e inícios da década seguinte, onde conseguiu arrecadar inúmeros prémios e ombrear com o também lendário Sugar Ray Robinson, derrotando-o e tornando-se no campeão. Depois do grande papel e reconhecimento em O Padrinho II e Taxi Driver, Robert De Niro calça as luvas de boxista naquele que é visto por grande parte da crítica cinematográfica como o melhor filme dos anos 80 – o que é sempre polémico, se atendermos ao facto de que O Homem Elefante, Aliens: O Recontro Final, Blade Runner, The Shining, etc, viram a luz do dia na mesma década – e reencarna a vida de um homem que em termos desportivos foi fenomenal, ao passo que fora dele, como referido, foi um desastre. Touro Enraivecido começa com um De Niro já retirado do boxe a praticar “stand-up comedy” no seu bar e termina da mesma forma, com um dos monólogos mais emblemáticos de Hollywood. Pelo meio, durante a grande parte do filme, De Niro é o temível Jake LaMotta dos ringues.

Ao contrário do que a capa do filme e o conteúdo possam sugerir, esta película afasta-se radicalmente de Rocky; no total, teremos algo como quinze minutos de cenas de combate entre o personagem principal e os seus adversários. No entanto, a carga psicológica de cada uma dessas cenas é densa, agressiva e bastante realista. Cada golpe de LaMotta desfere, acompanhado pelo preto e branco total do filme, é rápido, directo, carregado de impacto e isto sem se aproximar daqueles combates épicos e sangrentos de Balboa e Apollo Creed/Ivan Drago; em tão poucos minutos, Martin Scorcese capta na perfeição a raiva de LaMotta sem qualquer tipo de floreados ou momentos épicos: De Niro atira-se aos adversários dá, leva, senta-se no seu canto com a sua equipa e volta a dar e sofrer até vencer o combate.

Exemplar na arena, LaMotta revela sérios problemas de abuso de violência doméstica e desequilíbrios mentais para com a sua esposa Vickie (Cathy Moriarty), o seu irmão Joey (Joe Pesci) e os agentes do boxe que se intrometem na sua vida. É este o aspecto que mais chocou e ainda choca quem assiste ao filme: a violência desmedida que De Niro aplica especialmente na sua esposa e a forma como perde as estribeiras de um momento para o outro sem qualquer tipo de razão. Por mais de uma ocasião, Scorcese capta um toiro que progressivamente vai destruindo o seu casamento e a sua carreira profissional, até ao dia em que se retira - com bastante peso a mais - e se muda para Miami onde abre o seu clube de “stand-up comedy”. Ao longo do filme, vemos que Jake LaMotta tem um único adversário para derrotar: ele mesmo.

A crueldade e o comportamento autodestrutivo da personagem interpretada por Robert de Niro e tão bem captada pela mente de Scorcese, que tornam Touro Enraivecido num drama realista que rendeu a De Niro um Oscar e tirou a Scorcese outro que lhe era merecido. O preto e branco em que o filme é filmado enaltecem ainda mais a sua densidade.

Título original: Raging Bull 
Realização: Martin Scorsese  
Argumento: Mardik Martin, Paul Schrader

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

The Black Dahlia Murder «Ritual»


«Somos apenas miúdos “emo” a tentar tocar death metal», disseram eles numa entrevista há muitos anos atrás, numa altura em que poucos adivinhariam a violência sonora que este quinteto tinha para espalhar. Volvidos oito anos após o “debut” Unhallowed e os já clássicos Funeral Thirst, Contagion e Elder Misanthropy desse mesmo álbum - entre outros -, o grupo conseguiu criar sempre temas fortes em todos os lançamentos que procederam a estreia de 2003. 

Houve alguma preocupação em torno da saída do guitarrista John Kempainen, que tinha participado nos três primeiros álbuns, prontamente substituído pelo jovem guitarrista Ryan Knight dos Arsis, banda conhecida pelo (igual) abuso de melodia e técnica. Esta nova adição fez-se notar de imediato em Deflorate e creio que sobressai neste novo disco ao nível dos solos, “shredding” e riffs que lembram precisamente o passado de Knight na sua anterior banda (boa prestação em We Are the Nightmare, de 2008); a nível geral, este registo está fiel às raízes do grupo ainda que com algumas alterações: Knight teve certamente liberdade total na guitarra. 

A dupla de seis cordas Knight e Brian Eschbach flui naturalmente ao longo de doze temas (curiosamente é a primeira vez que temos doze canções em vez das habituais dez) com uma boa descarga de tecnicismo e entrosamento bastante saudável, auxiliados pelo baixo de Ryan Williams, relembrando-me os bons velhos tempos da “tripla terrível” Anders Björler, Jonas Björler e Alf Svensson, que fizeram história nos At the Gates ou mesmo até Andreas Axelsson, Sami Nerberg e Anders Lindberg, que gravaram os dois primeiros discos dos saudosos Edge of Sanity – não querendo, de forma alguma, comparar The Black Dahlia Murder com as duas referidas bandas suecas, que fique bem claro. Ritual apresenta-se um pouco diferente do passado nalguns momentos do disco, designadamente nos riffs mais polidos e maior espaço para os já referidos “shredding” e solos harmoniosos das guitarras que obrigam a transições e compassos de tempo mais demorados quando Knight aplica a sua dose de virtuosismo – Moonlight Equilibrium e On Stirring Seas of Salted Blood são um bom exemplo disto mesmo; adicionalmente, há momentos acústicos de guitarra e um piano em Carbonized in Cruciform que funcionam bem.

Em termos gerais, o disco está em bom plano e segue o liricismo sanguinário dos cemitérios, zombies e necro-romantismo da voz arrasadora e raivosa de Trevor Strnad e da leveza de membros frenética de Shannon Lucas na bateria. Os pontos mais fracos são, a meu ver, Malenchanments of the Necrosphere, Blood in the Ink – que bela faixa que ficaria sem os adornos sinfónicos… -, ao passo que existem temas que ficarão na memória (The Raven, A Shrine to Madness, Den of the Picquerist, The Grave Robber's Work). Os apreciadores de secções rítmicas que dão primazia a solos elaborados e limpos irão apreciar Ritual bem mais que aqueles que preferem a sonoridade de Miasma, por exemplo.

7.5/10

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Clarice Lispector «Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres»


Nascida na Ucrânia, esta autora rapidamente se mudou para o Brasil ainda criança devido às convulsões político-sociais que decorreram no início do século passado, nomeadamente o ódio contra os judeus, religião de Clarice Lispector e de sua família. Com apenas 19 anos, a escritora edita o seu primeiro livro Perto do Coração Selvagem, ao qual se seguiu uma carreira controversa onde redigiu obras que são pilares da literatura lusófona do séc. XX, das quais se podem destacar A Paixão segundo G.H., A Maçã no Escuro ou Um Sopro de Vida, romance póstumo.

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres poderia perfeitamente incluir um ? no final do título, tal é a interrogação a que cada leitor é posto à prova na leitura desta rica obra verdadeiramente introspectiva. A autora tem a preocupação de criar apenas duas personagens e uma estória de amor em torno delas que está longe de ser uma tradicional paixão entre um homem e uma mulher, bem pelo contrário; a narrativa incide na vida de Lóri – diminutivo de Loreley -, uma jovem oriunda de uma família abastada que se muda recentemente de Campos para o Rio de Janeiro e que é professora primária. O amor da vida desta é Ulisses, um homem mais maduro em idade e experiência de vida que é professor universitário de Filosofia. A partir do momento em que se conhecem, a vida de Lóri muda drasticamente.

Lóri teve outros homens na sua vida, mas nenhum lhe tinha colocado o desafio que Ulisses lhe coloca: descobrir-se a si mesma, descobrir o que ela realmente deseja e desfrutar os pequenos grandes momentos da vida. Ulisses é metódico, muitas vezes distante e severo no que à forma como trata a jovem personagem principal diz respeito: ele põe-na à prova. Lóri é obrigada a mergulhar profundamente dentro no seu ser para descobrir quem realmente é e o que deseja fazer com Ulisses. Tal como a própria Clarice Lispector foi em vida, Lóri é complexa, sensível e muitas vezes se interroga sobre pequenos aspectos da vida: sofrer para atingir o bem-estar, sacrificar este bem-estar em troca com uma interiorização densa de uma relação séria com o amor da sua vida. Os diálogos presentes em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres são curtíssimos e marcados por um tom rígido e ostensivamente sério, originando vários momentos de introspecção.

Lóri não pretende apenas encontrar um amor na sua vida, isso já ela teve antes. Ulisses é aquele com quem ela quer passar o resto da sua vida e com quem ela quer ter a sua primeira experiência sexual. Nesta matéria, Ulisses é paciente e frio: coloca pequenos desafios a Lóri, obriga-a a afastar-se dele durante algumas semanas até que ela ultrapasse a sua própria insegurança e medo. Apenas quando ela estiver pronta deve contactá-lo para consumarem o seu amor. Ulisses tem mais que uma mulher na sua vida – a sua própria casa o indica -, contudo, largará todas as outras companheiras assim que Lóri o informar de que encontrou o que busca incessantemente.

O processo de amar de Lóri transforma este livro numa mera aprendizagem do prazer de amar, numa descoberta do prazer ou até em ambos os casos. Clarice Lispector logrou compor uma obra importante na literatura brasileira a partir de duas personagens com uma densidade psicológica rica que compensam a quase ausência de diálogos ao largo da mesma. Descobrir a obra de Lispector é, no mínimo, altamente recomendado.