quarta-feira, 27 de julho de 2011

Terry Reid «Seed of Memory»


Tenho que agradecer a Rob Zombie por várias coisas no geral e uma no particular. Porque é um óptimo realizador de filmes, porque fez grande carreira nos White Zombie, porque a solo faz músicas divertidas e agradáveis (mesmo quando Ozzy Osbourne lhe rouba músicos). Em particular, gostava de lhe dizer «obrigado» por ter incluído um grande artista na banda sonora dum dos filmes de terror mais espectaculares dos últimos anos, Os Renegados do Diabo. Obviamente que tenho inveja da sua esposa e por isso, Rob, não te estou grato por nada.

O músico em particular é um senhor que, por estranhos motivos, não é muito divulgado, apesar de ser da mesma geração do rock ‘n’ roll e folk dos finais da década de 60 e de ter feito grande carreira na década seguinte. Terry Reid, nascido no Reino Unido em 1949, ainda hoje está no activo e dá concertos, apesar de o seu último disco de originais ter sido lançado já há já sete anos e de nos últimos vinte anos ter tido uma discografia praticamente inexistente. Inglaterra será para sempre lembrada como o país das maiores bandas de rock de todos os tempos e os Black Sabbath, os Rolling Stones e os Led Zeppelin – mesmo com aqueles plágios descarados nalguns dos seus grandes “hits” - figurarão no Panteão da música.

Terry Reid é aquele tipo de músico que tem muita paixão por aquilo que compõe e pelas guitarras com que toca belas canções dirigidas maioritariamente a mulheres igualmente belas (o habitual das letras dos Stones, Hendrix, Zeppelin, etc) que, ao som de The Way You Walk, deve ter seduzido inúmeras vezes. Este Seed of Memory, editado em 1976, prima pela devoção da fusão entre o folk e o rock de forma descontraída, suficientemente “bluesy” e harmónica em cada acorde que ecoa na guitarra de um Reid cuja voz sobressai em relação aos demais pelos roucos choros que as suas cordas vocais emitem, mesmo do fundo da garganta. Os temas que mais chamam a atenção são, curiosamente, aqueles que foram incluídos na banda sonora do referido Os Renegados do Diabo: Seed of Memory, Brave Awakening e To Be Treated Rite. A beleza da melodia e do vozeirão de Terry Reid são louváveis, honestas e cativantes, na toada de um Planet Waves de Bob Dylan ou um If You Can Believe Your Eyes and Ears dos extintos The Mamas & The Papas – só que ainda melhores, bem melhores. Ao ouvir Grace, de Jeff Buckley, por exemplo, apercebo-me da influência que Reid teve sobre este e outros grandes compositores que apareceram: aquela graça, aquele sentimento estão presentes.

Seed of Memory é um disco que dá vontade de ouvir vezes sem conta, tal como a grande voz que Terry Reid manda cá para fora. A voz – e não me canso de a repetir – é mesmo o elemento chave deste disco; algo que o distingue das centenas de discos editados na década de 70 e, convém recordar, que ao contrário dos dias de hoje onde só ao vivo (e mesmo aí, muita atenção) é possível descobrir se o artista é genuíno ou se gravou o disco com Pro Tools. Um disco virado para o amor, sem dúvida.

8.5/10

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Roberto Bolaño «Os Dissabores do Verdadeiro Polícia»


Não muito raramente acontece que um autor fique famoso e idolatrado após deixar o reino dos vivos. Se atentarmos sobre grandes nomes que populam hoje as Artes, constatamos que Franz Kafka, Vincent van Gogh, Edgar Allan Poe, Henry Thoreau, Jeff Buckley ou Emily Dickinson, entre outros, tiveram vidas discretas – miseráveis nalguns dos casos – e o seu valor nunca lhes foi reconhecido aquando da realização das suas diferentes profissões. 

Roberto Bolaño é um dos últimos fenómenos da fama “post-mortem” da Literatura. Nascido no Chile em 1953, o sul-americano deixou um legado de obras que hoje abundam em destaque nas principais livrarias da América latina, Espanha, Estados Unidos e no nosso país; 2666, o seu mais famoso romance, foi campeão de vendas do ano passado e, desde então, outros livros do autor têm suscitado o interesse do público. Os Dissabores do Verdadeiro Polícia, escrito em diferentes entre a década de 80 e 2003, é o registo que Roberto Bolaño definiu como a sua melhor obra («é o MEU romance»). Amalfitano é um homem viúvo de 50 anos que passou parte da sua vida fora do seu país natal, trabalhando no ramo da tradução e ensino e que agora regressa ao México na companhia de Rosa, a sua filha de 17 anos. Descobriu recentemente que é homossexual e apaixonou-se por Padilla, um ex-aluno seu de uma universidade de Barcelona, com quem estabelece uma relação íntima forte de amizade e paixão onde divagam, por exemplo, sobre quem é o poeta mais “bicha” e sobre o livro que Padilla está a escrever, intitulado O Deus dos Homossexuais.

Esta é a ligação mais forte entre personagens existente neste romance fragmentado em cinco capítulos, constituídos eles por vários sub-capítulos aparentemente desconexos mas acabados – a obra não chegou a ser finalizada, no entanto. Ao longo do livro, Bolaño explora e viaja pelo mundo e pelos grandes artistas de várias nações, revelando uma grande cultura e capacidade de organização notáveis. Como já foi referido, não obstante todos os capítulos estarem completos, a obra ficou inacabada e cabe ao leitor configurar a aparentemente deficiente ligação entre espaços, personagens e histórias, resultando daí talvez o “detectives” presente no título. Bolaño tentou incorporar nesta obra os grandes poetas, romancistas e outros ligados à Arte; no fundo, o autor conduz a alta velocidade pelas estradas da fantasia e realidade, cruzando e referindo personagens e génios espaçadas geográfica e temporalmente - criando mesmo autores inexistentes como é o caso de Arcimboldi, um romancista que aparece noutras obras do chileno.

A capacidade de descrever de forma rápida mas detalhada culturas por onde Amalfitano passa é notável, assim como o tradicional humor latino-americano - numa das várias cartas trocadas entre Padilla e Amalfitano, o espanhol escreve que «O meu romance, disse ele, será como uma emissão de luz estroboscópica, com muitas personagens (mas desdenhadas ou desenhadas com traços arbitrários e ditados pelo acaso) e muita violência e muitas lutas de lobos e de cães e de muitas pilas em riste e lubrificadas, muitas pilas duras e muitos uivos» - e as mortes carregadas com algum humor negro (o último capítulo intitula-se Assassinos de Sonora) que amenizam a verdadeira tragédia que assola o México no particular, e a Vida no geral.

Os Dissabores do Verdadeiro Polícia aproxima o autor do leitor, na medida em que este tem que descodificar o elo de ligação das histórias de um romance que pode ser interpretado de forma diferente consoante quem o lê. Um livro que fica um pouco aquém das expectativas criadas em torno do mesmo, alimentando-se de demasiado marketing e muito “hype” por parte da crítica, mas que é muito bem escrito e proporciona bom prazer.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

«Cisne Negro»


Darren Aronofsky é um realizador que parece talhado para grandes produções e exploração de temas sensíveis e complexos - desinteressantes, nalgumas das vezes. Aconteceu com os vícios fatais de A Vida Não É um Sonho, o renascer condenado ao fracasso da vida familiar e profissional do wrestler Randy Robinson de O Wrestler, o quebra-cabeças psicológico e denso de Pi. No ano passado apostou no ballet.

Natalie Portman (V de Vingança) interpreta o papel de Nina Sayers, uma jovem bailarina que treina numa grande companhia de ballet de Nova Iorque e que tenta desesperadamente ganhar o papel na peça “Swan Lake”, interpretando o papel de dois cisnes: o Branco, na sua pureza e graciosidade; e o Negro, provocador e malicioso. Nina é demasiado ingénua e bondosa para poder encarnar o Cisne Negro: só a presença de uma bailarina audaz e um director atrevido e severo conseguiriam despertar em Portman os sentimentos requeridos para se transformar na escuridão. A bailarina audaz é Lily (mila Kunis), uma jovem recém chegada à companhia que desperta rivalidade entre si e Nina, ao passo que o director Thomas Leroy é interpretado por Vincent Cassel. Tanto Lily (perfeita para o papel do Cisne Negro) e Cassel despertam em Nina sentimentos e facetas que ela antes não conhecia.

Aronofsky capta o habitual estereótipo das grandes bailarinas: Nina é uma jovem que despende muito tempo na companhia a treinar e, nos tempos ditos “livres”, esgota-se em casa a praticar movimentos. A obsessão para ser perfeita e ultrapassar o falhanço da mãe, uma ex-bailarina que não atingiu o sucesso que a filha pode alcançar, começam a constituir um peso demasiado pesado na vida de Nina, consumindo-a por dentro, tornando-a num ser sem vida, demasiado formatado e moldado pelas exigências do ballet. A severidade e a frontalidade de Leroy, retratadas em vários momentos do filme, são intensas e explícitas, insistindo na exploração pessoal e sexual da personagem principal para se tornar apta para desempenhar a faceta negra que está ausente. Uma vez concedido o papel de actriz principal na pela, Portman começa a alucinar desenfreadamente com as feridas que vão aparecendo no seu corpo e que se estendem à forma como percepciona as intenções de Lily. Nina inquieta-se ainda mais com a sua transformação no momento em que conhece Beth (Winona Ryder), a ex-grande estrela da companhia e protegida de Lerouy, e a visita no hospital após um grave acidente que a deixa praticamente imóvel e com cicatrizes horríveis no corpo.

Só depois de morrer o Cisne Negro poderá livrar-se da maldade e reencarnar. Esta é uma das chaves de Cisne Negro e de toda a sua misteriosa simbologia e surrealismo que Arafnosvky “rouba” de grandes thrillers do passado; na verdade, não poucas foram as vezes em que estabeleci paralelismos entre esta obra e o legado de Kubrick, nomeadamente nos seus Laranja Mecânica e Shining, especialmente este último. Nina afirma-se como uma personagem principal que endoidece (tal como Jack Nicholson) e alucina à medida que dança e define que Lily é sua inimiga (quando na realidade não parece ser… ponto de vista este sujeito a mais que uma interpretação); a partir do momento em que tem que representar o papel dos dois cisnes, as suas acções seguem o caminho paralelo ao perfil que nos é inicialmente apresentado da frágil e dedicada bailarina, demasiado ingénua e insegura. A simbologia da vida (Cisne Branco) e morte (Cisne Negro) torna-se mais rica na já referida atribuição do papel principal na peça “Swan Lake”, assim como as várias dúvidas e ilações que o espectador poderá experienciar – eu fi-lo. 

Cisne Negro consegue ser pretensioso nos grandes planos das câmaras do realizador, cruel na escravidão da vida das bailarinas, faustoso na banda-sonora e graciosidade das coreografias. No entanto, o grande ponto forte do mesmo é a dubiedade de significados que duas pessoas que vêm o mesmo filme conseguirão apresentar e, independentemente disso, criar uma sensação de consenso entre si. 

Título original: Black Swan
Realização: Darren Aronofsky 
Argumento: Mark Heyman, Andres Heinz, John J. McLaughlin, Andres Heinz
Produção: Fox Searchlight Pictures, Protozoa Pictures, Phoenix Pictures, Cross Creek Pictures

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Oscar Wilde «O Retrato de Dorian Gray»


A par de James Joyce ou Samuel Beckett, Oscar Wilde é um dos escritores irlandeses mais famosos e criativos, cujo legado literário é objecto de estudo intenso. Intensamente ligado às Artes e à Estética, Wilde dedicou grande parte da sua vida ao estudo destas correntes culturais e filosóficas, quer no teatro, quer na literatura. O Retrato de Dorian Gray, seu único romance, explora o esteticismo.

Dorian Gray (Oscar Wilde) é um jovem belo e respeitadíssimo nos centros aristocráticos da Inglaterra do séc. XIX, um jovem em quem Basil Hallward se inspira para criar a sua obra-prima: o retrato de Dorian Gray. Basil (Oscar Wilde) vê em Dorian um Adónis, um ser esbelto e expoente máximo da beleza; o triunfo da arte e do prazer sobre a vida e a moral. O triângulo completa-se com Lord Henry Wotton (Oscar Wilde), um cavalheiro que trava conhecimento com o jovem Adónis e trava uma relação íntima de amizade homoerótica, moldando-o à sua maneira, transmitindo-lhe a sua filosofia de vida que se baseia na procura do hedonismo. 

No momento em que Basil acaba de sumptuosamente pintar Gray, este fica possesso por uma enorme sensação narcisista e pede para que o quadro fique na sua posse, para seu deleite. No entanto, a bela representação sofre alterações à medida que o jovem comete excessos e loucuras: o retrato envelhece, desbota e a expressão facial altera-se ruinosamente. O primeiro grande momento do cinismo e despreocupação pela moral da vida dá-se quando Gray conhece uma Sibyl Vane, uma jovem bela que faz teatro de forma graciosa, por quem ele se apaixona e decide casar-se. Contudo, e constatando o amor, a jovem perde interesse na representação e tem uma actuação medíocre, conduzindo Dorian Gray a um ataque de fúria e humilhação, findo o qual rompe com a relação, levando Vane ao suicídio. A reacção de Gray perante esta situação é de puro desinteresse, prosseguindo com o seu estilo de vida vaidoso e dandista. O segundo grande momento da acção acontece com o assassinato hediondo por parte do dandy. 

A narrativa banha-se em belas, grandiosas e faustosas descrições góticas de personagens e cenários, imprimindo um ritmo lento, deveras arrastado, criando precisamente um clima de individualismo e contemplação da arte: literatura, pintura, música, teatro, escultura. Oscar Wilde é, no fundo, todas as personagens da obra, como o próprio admitiu: «Basil Hallward é aquilo que eu penso de mim; Lord Henry, o que o mundo pensa de mim; Dorian é o que eu gostaria de ser noutra época, talvez.» As interpretações da obra são ambíguas e têm criado fortes discussões, mas parece ser claro que Wilde não pretendeu nunca que fosse feita uma representação fiel da sua pessoa neste romance; apesar de ser um grande estudioso e defensor do Esteticismo e de todas as transgressões que o movimento causa em prol da arte e da perfeição, reduzindo o papel da moral em várias ocasiões («A vida moral do homem é assunto para o artista, mas a moralidade da arte consiste na perfeita utilização de um meio imperfeito.»), o autor valoriza a imaginação – em oposição à moral – como meio para atingir a perfeição artística do Homem («Era a imaginação que gerava em cada crime os seus fantasmas hediondos. No mundo vulgar dos factos, os maus não eram castigados nem os bons recompensados.»).

A moral acaba no final da obra por ser recompensada, contrariando a ideia do individualismo e imoralidade presente ao longo do romance, no entanto. O Retrato de Dorian Gray é um belo e complexo livro - especialmente se for visto de um prisma totalmente estético – que assinalou, em vários momentos após a sua publicação, o polémico decadentismo britânico.

terça-feira, 12 de julho de 2011

For the Glory «Some Kids Have No Face»


Oito anos de existência, dois álbuns, uma demo, um EP, alguns splits com bandas da cena underground, turnés europeias, palcos partilhados com titãs europeus e americanos (Madball, Terror, Hatebreed, Agnostic Front, No Turning Back, Rise and Fall, etc), sangue, suor e algumas lágrimas marcam a carreira dos For the Glory. Oriundos da grande Lisboa e da Maia, o quinteto é, desde há muitos anos para cá, um dos maiores fenómenos de popularidade e reconhecimento do hardcore punk nacional.

Quatro anos passaram desde o lançamento de Survival of the Fittest – um álbum encarado já como referência nacional – e, desde então, houve extensa promoção ao disco pelas cidades do nosso país e além fronteiras, como mencionado no parágrafo anterior. Costuma-se dizer que o esforço compensa, não obstante os grandes obstáculos que enfrentamos diariamente, e no caso deste grupo isso é uma realidade; já tive a oportunidade de ver muitos concertos e é genuína a raiva e amor que João, Sérgio, Rui, Cláudio e Ricardo entregam em cada concerto, seja a sala grande ou pequena, haja palco enorme ou nem por isso: o gosto pela música que fazem, fiel às raízes do género musical, é sempre transmitido com grande entusiasmo, mesmo quando têm que tocar para vinte pessoas.

Some Kids Have No Face apresenta-nos o retrato de um grupo de jovens mais maduros e dinâmicos que conservaram a humildade anterior e se juntaram mais uma vez para fazer boa música e, dada a oportunidade e disponibilidade, e partir à expansão da considerável legião de fãs. O disco, e em comparação com o anterior, pisa um pouco as linhas do crossover, mostrando-se claramente mais metal em vários momentos (fruto talvez da inclusão de João Reis nas seis cordas), mais corpulento e mais feroz nas vocalizações. As arrancadas ríspidas de All the Same, conjugadas com um bom conjunto de riffs, parecem saídas dum álbum de thrash metal, fazendo recordar os momentos mais brutais dos primeiros trabalhos dos holandeses Born From Pain e do Join the Army, dos Suicidal Tendencies. Todos os temas gozam de boas doses de melodia, “breakdowns” 2-step (aparentemente em menor número em relação a Survival of the Fittest), mudanças de ritmo dinâmicas, bons coros e grandes letras. A mensagem base e o título deste disco são alusivos à actual crise económico-financeira por que estamos a passar, com excepção dos bancos, políticos e Banca; para estas entidades, os cidadãos não passam de números sem rosto (daí o No Face), de meros objectos moldáveis na perversidade de quem os controla.

A grande pedra no sapato encontra-se na produção do disco. De facto, as guitarras apresentam-se demasiado altas, musculadas e estridentes, e isso faz-se notar nos momentos de maior velocidade, abafando demasiado as notas do baixo e a voz. Mesmo nesta é notório que houve um trabalho algo deficiente, na medida em que as vozes soam demasiado forçadas e distorcidas. Este Some Kids Have No Face oferece grandes temas, dos quais destacaria o homónimo, Armor of Steel, All the Same e Behind My Back.

8/10

domingo, 10 de julho de 2011

Champion «Promises Kept»


Foi com grande pena que recebi a notícia de que uma das bandas mais interessantes e refrescantes dos últimos anos do movimento hardcore punk tinha encerrado actividades. De facto, quando se pesquisa por bandas de hardcore, costuma-se encontrar com alguma frequência grupos com atitude “tough boy” e um som bastante metálico, afastando-se das bases do saudoso som daquelas grandes bandas do final da década de 80, inícios de 90. Este grupo marcou, de 1999 a 2006, uma era.

Os Champion, de Seattle, foram uma banda que num curtíssimo espaço de tempo criou um impacto na cena youth crew, revitalizando-a e injectando-lhe uma boa dose de positivismo e atitude 100% straight edge, ao longo de dois EPs, um split e um longa-duração. Os temas de Promises Kept seguem as pegadas dos colossos que fundaram e mantiveram a chama acesa do movimento youth crew – Judge, Youth of Today, Bold, Chain of Strength, etc, etc -, escrevendo letras que se debatem com a perseverança (Next Year: “We can always remember the past, but we only get one shot at today / So leave regrets to yesterday”), o positivismo (The Truth: “You've got the answers you need, just look inside yourself”), e o já citado straight edge (Alone in a crowd, but we're still standing strong / With X's up fists and sing alongs, times like these are what we live for / These days are more than we'd ever hoped for”).

As canções dos Champion não se pautam pela elaboração de solos ou demorados break downs, mas sim por power chords simplistas e pujantes, melodia abundante, baixo pulsante a acompanhar uma bateria incansável do primeiro ao último segundo - cada tema, com excepção dos 3:14 minutos de Every Word, dura cerca de um a dois minutos. Todos os temas são enérgicos e rápidos, marcados por “sing alongs” frenéticos e convites ao slam dance. Promises Kept, tal como os outros lançamentos da banda do estado de Washington, denota uma grande paixão e entrega àquilo que escreviam e defendiam, à semelhança de uns Bane, Carry On ou Have Heart, por exemplo.

Este disco, assim como a banda, são profundamente essenciais para os adeptos de hardcore punk rápido old school e melódico com grande sentimento – sentimento esse facilmente corroborado pelo último concerto da banda Different Directions, disponível em CD/DVD. Se me permitirem a audácia, Promises Kept tem uma importância e qualidade tão acima da média que me levam a colocá-lo no mesmo patamar de The One Thing That Still Holds True e Start Today.

9/10

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Sepultura «Kairos»


Aquela velha máxima do ou odiamos ou amamos aplica-se com bastante frequência quando pronunciamos a palavra “Sepultura” no meio do metal. Estes Sepultura incluíram sempre e ainda incluem nas suas formações músicos criativos e de bastante talento, mesmo quando um deles usava apenas as quatro cordas da guitarra ou quando o baixista fica nervoso e ansioso e não consegue gravar em estúdio. Na realidade, dá gosto ouvir uma banda que procura sempre diversificar o seu som – nem que seja um pouquinho - e arrisca nas influências e novos caminhos.

As mutações do grupo de Belo Horizonte são mais que muitas e conhecidas: desde aquele death metal sujo dos primórdios, da tripla genial Schizophrenia/Beneath the Remains/Arise, o experimentalismo tribal de Chaos A.D. e Roots, a costela mais hardcore que se seguiu, até às influências da literatura e música clássica dos recentes álbuns, o grupo sempre gostou de inovar (por vezes em demasia, em boa verdade seja dita). Se nos primeiros tempos Derrick Green demorou a entrar no ritmo da banda, o mesmo não se aplica aos últimos registos, muito menos àquela pujança de Dante XXI e ao brilho eclético de A-Lex (poucas serão as bandas capazes de se gabar de terem feito uma adaptação tão brilhante tanto do filme, como do livro). Os Sepultura são hoje um quarteto bastante coeso e criativo.

Kairos é um disco que prima por uma originalidade razoável e pelo apanhado inteligente de alguns dos melhores momentos do passado, sem atingir o “auto-plágio”, passe-se a expressão - já há muito que os brasileiros se podiam ter entregado ao simples “copy-paste” da era em que eram um dos grupos mais populares do metal. Em boa hora nunca o fizeram e optaram pela mistura do antigo com o novo. A estrutura base do disco assenta muito nas variações mid-tempo típicas do groove e as arrancadas vistosas e frenéticas do thrash metal, ainda que haja algumas referências aos riffs death metal de alguns temas de Schizophrenia (Seethe, No One Will Stand).

Spectrum, com o seu tom quasi-maquinal e hipnótico, abre as hostes do disco, com especial destaque para a bateria de Jean Dolabella e a guitarra de Andreas Kisser. Os solos de guitarra estão em grande plano, tal como o “shredding” desenfreado após as várias mudanças de ritmo que Kisser (igual a si mesmo) executa em Relentless, Born Strong e No One Will Stand. Os riffs deste último tema recuperam o saudosismo da dinâmica e ritmo furioso de Arise, perfilando-se como o tema que os fãs mais antigos mais apreciarão, ao passo que o tema homónimo traz consigo um aroma de Refuse/Resist e Territory.

Este décimo segundo longa-duração tem os seus espinhos em determinados momentos que pediam mais velocidade e menos experimentação/mid-tempo, assim como um ou outro tema que podia ter sido excluído do disco - Dialog ou Just One Fix, um original dos Ministry encaixavam melhor na edição deluxe, onde consta também a popular Firestarter dos Prodigy. Não é tão inovador nem superior aos dois últimos - em especial A-Lex, pelo conceito e os moldes em que foi feito -, mas Kairos é um disco forte e bem trabalhado por parte de uma formação que soube lidar com a perda de dois membros emblemáticos.

7.5/10

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Russian Circles «Geneva»


Em círculos gira a música hipnótica que o colectivo de Chicago debita nos sete temas do seu terceiro longa-duração. Num mercado cada vez mais saturado de cópias, plágios e falta de originalidade, lá vão surgindo corajosos capazes de criar música com dedicação, chama e sentimento, preferindo afastar-se da moda que o determinado género musical em que se inserem navega. A Estética, enquanto ciência privilegia o estudo do belo; a Música, enquanto arte, devia preocupar-se também com a beleza, de vez em quando.

As primeiras batidas, os primeiros acordes das guitarras e a psicadélica do baixo bem distorcido de Fathom têm o dom de criar um ambiente denso e extremamente pesado na cabeça do ouvinte; é impossível ficar indiferente à hipnose dos tempos e contra-tempos que enrolam, ao bom estilo de Catch Thirty-Three, a primeira faixa de Geneva, prolongada pela graça e atmosfera daquele “delay” das seis cordas e do coração pulsante e acelerado da bateria de Dave Turncrantz nos dois temas seguintes. Depois da neve dos invernos rigorosos que se fazem sentir em na fria Genebra, a primavera de Hexed All chega harmoniosa e singela, transbordando paz e calma.

Descrever o som dos Russian Circles é uma tarefa que, à partida, é simples de executar. Longas músicas no geral, ausência de vozes, batidas suaves remetem automaticamente para o post-rock e o sem número de bandas que exploram o género sem graciosidade ou alma; negar que o trio retira influência no género que tanto vem associado a Sigur Rós, Pg.lost, Tortoise ou até mesmo Swans, seria incorrecto. No entanto, julgando pela variedade de melodias, ritmos, peso, instrumentos (violino, violoncelo, piano, etc), criatividade e mesmo até algum virtuosismo evidenciado neste e nos anteriores registos, seria um pouco redutor catalogá-los dessa forma. Há aqui claras referências a Tool, Pelican, rock progressivo e (a matemática de uns) Meshuggah que devem ser apontadas.

Apesar de o próximo registo estar agendado para o final deste mesmo ano, Geneva é um disco que tem a obrigatoriedade de rodar vezes sem conta até que a banda lance material novo. O passado da banda assegura qualidade para o sucessor deste álbum.

8.5/10

sábado, 2 de julho de 2011

Irvine Welsh «Lixo»


Ler faz bem e estimula os sentidos. Ver um filme é interessante, mas nada nos tira aquela sensação de sermos o próprio realizador daquilo que estamos a ler, e se todos comparássemos os frames que desenhamos no nosso cérebro, teríamos muitas películas com os mesmos personagens, sim, mas diferentes em muitos aspectos. Lixo, publicado em 1998, já depois do sucesso e fama de Trainspotting, está neste momento em pré-produção e estima-se que veja a luz do dia no próximo ano pelas mãos de Jon S. Baird.

Irvine Welsh, diga-se o que se quiser, é o mais brilhante romancista a emergir na Escócia das últimas décadas. Esta obra foi a primeira que li dele, uma leitura efectuada num dia que me causou um grande sentimento de estupefacção e tristeza – não porque o final me tenha feito chorar, longe disso, mas porque queria mais; queria que o livro não acabasse, que no mínimo tivesse o dobro das páginas. Caso fosse o tradutor, não teria optado pela escolha de Lixo para título. Não, teria escolhido uma tradução mais literal, e Filth chamar-se-ia Nojo: poucos são os livros cujos títulos sugerem uma relação directa entre os mesmos e as imagens que obtemos da sua leitura. Este é um deles.

Na pele do sargento detective Bruce Robertson, Welsh explora não só a corrupção do sistema policial da Escócia e os abusos que os agentes fardados cometem, mas também toda a subcultura hooligan do futebol de Leith, Edimburgo, e as diferenças entre os estratos sociais (tema recorrente em muitos dos seus romances). Robertson é viciado em droga, sexo “hardcore”, pornografia, prostituição, extorsão, chantagem, “fast food”, adultério, e racismo; é este mesmo sargento detective que tem que resolver o brutal assassinato de um jornalista negro. Em vez disso, a personagem diverte-se a abusar de raparigas menores, a fornicar as colegas de trabalho e as esposas dos colegas de trabalho e a apreender droga para consumo próprio, claro. Este crime vem pôr em risco as férias em Amesterdão que o sargento detective já comprou, porém, um bom polícia arranja sempre forma de contornar a lei e de ir visitar o Red Light District na companhia de um amigo que Robertson faz questão de vigarizar.

Nas primeiras páginas do romance é-nos apresentada uma lombriga que habita e consome os interiores de Robertson. Ela mesma se apresenta a si própria em diálogos que mantém com o leitor e com o anfitrião, interrompendo-o sempre que pode sem lhe dar notícia de que está dentro dele. Infelizmente para Robertson, os seus hábitos alimentares não são os melhores e muitos menos os cuidados higiénicos, daí que já tenha contraído uma boa urticária genital; não obstante a doença, a personagem gosta de comer fritos com uma boa dose de gordura e logo de seguida coçar os genitais, entre outras coisas que desafiam a lei da higiene mínima.

A forte carga brutal e chocante que marca o romance coloca para segundo plano a investigação do jornalista, dando antes espaço à exploração das ruas sujas e perigosas de Leith e à falta de escrúpulos de Robertson - um homem que durante a infância e adolescência passou por um mau bocado, sendo esse aspecto bem explorado durante uma parte do romance. Lixo, que se cruza com personagens de Trainspotting, mais que um livro, é um vício para os olhos.