sábado, 29 de outubro de 2011

Opeth «Heritage»


O que fazer quando uma banda anuncia que vai mudar de estilo, mantendo no entanto, os alicerces de toda a sua obra discográfica? O que fazer, então, se quem responde à pergunta é um seguidor de longa data do grupo, tem as raridades, compra bootlegs e LPs? Talvez a maioria desses fãs goste do que a banda venha a compor, talvez a maioria sacuda a cabeça em desagrado.

Heritage marca a passagem do death metal progressivo para o rock progressivo genuinamente anos 70, a começar no design da capa do disco, na produção e a acabar, bem, na música. Mikael Åkerfeld, líder e mentor de uma das bandas que mais inovou e quebrou barreiras no heavy metal dos últimos quinze/vinte anos, já há muito que ia avisando que um dia iria fazer um disco puramente progressivo, baseado nas bandas que ele e o resto da banda cresceram a ouvir: Camel, Yes, Genesis, King Crimson, etc. Åkerfeld, em entrevistas, afirmou que se sentia um pouco deslocado da comunidade death metal e que quando era mais jovem não era propriamente um metaleiro; antes alguém que apreciava metal extremo, sim, mas que não era fanático pelo mesmo – em 2006, aquando da passagem da banda pelo extinto Hard Club de Vila Nova de Gaia, e promovendo Ghost Reveries, ele questionou a plateia se apreciava… Camel, Yes, King Crimson.

Esta não é, no entanto, a primeira vez que os suecos apostam num disco rock, visto que já em Damnation tinha havido uma abordagem claramente roqueira e em prol de algo que tinha semelhanças com Porcupine Tree em vários aspectos. Sem embargo, era público que a banda iria aproveitar essa experiência mais calma e voltar ao death metal que lhes era conhecido, ao passo que este Heritage cria uma verdadeira incógnita: alguma vez recuperarão o fulgor de um My Arms, Your Hearse, ou aqueles guturais e aqueles riffs brutais de uma Master's Apprentices? Só Åkesson, Svalberg, Axenrot, Méndez e Åkerfeldt saberão responder à pergunta. O álbum em si apresenta-se compacto, muito bem tocado e com um aroma demasiado anos 70, para grande pena da originalidade que marcava os anteriores registos. Os dedilhados e os riffs funcionam às mil maravilhas, a percussão de Axenrot é, no mínimo, enorme, e o baixo e órgão vincam bem a aposta progressiva – especialmente o órgão - de há quatro décadas no tempo.

Heritage é também um trampolim para Åkerfeldt mostrar a graciosidade da sua voz limpa – que bela que ela é -, sem qualquer berro, num equilíbrio constante de um músico que tem agora a sua oportunidade para mostrar ao mundo que tem um timbre único e que compõe letras como poucos, a juntar à criatividade da sua guitarra. O disco falha claramente na colagem demasiado óbvia aos colossos do rock progressivo, já referida por mim e por todos aqueles que opinam sobre o álbum, e isso é algo que a banda pouco poderá argumentar para se defender, mas era isto que eles queriam gravar e, nesse aspecto, sempre foram honestos – nada de dedos em apontados, por favor. Os momentos de maior intimismo são aqueles que soam melhor e que dão realmente gosto de serem apreciados vezes e vezes sem conta; estou a falar de Nepenthe e do seu grande solo à Jethro Tull, do aroma folk tão bem conseguido de The Lines in My Hand, as variações de rimo e peso de Famine e a vénia que tem que ser feita ao sentimento épico que Folklore transmite. Menção honrosa para o tributo a Ronnie James Dio de Slither, a faixa mais hard ‘n’ heavy do décimo disco de originais do grupo do sul da Suécia.

O ouvinte mais casual vai adorar Heritage, o fã de longa data vai ficar algo decepcionado, enquanto que o tal que tem tudo e mais alguma coisa da banda, embora defraudado, vai esgrimir argumentos e “factos” que comprovam que não, que este álbum é fantástico e que a originalidade abunda. Enfim, tem os seus grandes momentos, foi composto por músicos de calibre inquestionável, mas estamos em 2011, não em 1970.

7/10

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Maria Gabriela Llansol «Na Casa de Julho e Agosto»


Maria Gabriela Llansol foi uma escritora incompreendida, no geral, pela imprensa nacional, autora de obras ímpares, assim como um estilo literário ao qual é difícil identificar um conto, um romance, um livro de memórias, ou ensaios. De ascendência espanhola (daí o apelido Llansol), a escritora nunca se identificou verdadeiramente com um Portugal opressor, nem mesmo após o 25 de Abril; de facto, a escritora passou grande parte da sua vida residindo na Bélgica.

Inserida na trilogia Geografia de Rebeldes, Na Casa de Julho e Agosto é o fecho da mesma, iniciada em O Livro das Comunidades e seguida em A Restante Vida. O título do livro e da trilogia são simbólicos e enigmáticos, a escrita bastante original e a leitura nem sempre é fácil: Llansol escreve da mesma forma que ela sempre se enquadrou no Mundo, através de temática(s) e estilos literários vastos, separados geograficamente (Kafka, Camões, Nietzsche), embutidos de um grande espírito de “comunidade”. Em boa verdade, é difícil entender a autora como uma cidadã portuguesa. É necessário expandir a mente e a alma para se compreender minimamente o legado llansoliano e observar que ela pertencia ao Mundo – numa entrevista a João Mendes, publicada no Público a 18 de Janeiro de 1995 (transcrita na sua totalidade nesta mesma edição da Relógio D'Água), e sobre a questão da sua relação com o país de origem, Llansol foi esclarecedora: «De Portugal conheço o português que é gente e uma língua. Conheço pouca gente, mais paisagens do que gente, e trabalho a língua. Não consigo ser patriota. E muito menos no pensar.».

Na Casa de Julho e Agosto apresenta-se disposto como um bom quebra-cabeças, incrivelmente denso e curto no número de páginas. Dando continuidade aos dois primeiros capítulos da trilogia, a estória é contada por beguinas e personagens da História (umas religiosas, outras do campo das Artes) separadas por séculos, criando um ambiente de exílios e viagens ao largo do Mundo através de rios (Tejo, Eufrates e Tigre) que interligam vários países – aqui uma vez mais a sensação de emancipação e corte da escritora com o Portugal dos anos 60/70/80 – e permitem uma partilha de culturas que o nosso Portugal não permitia na altura em que a trilogia foi escrita; além disso, a emancipação da Mulher parece-me ser um assunto que a escritora aborda.

Não tenho dúvidas ao afirmar que a obra é de uma difícil interpretação – amenizada e simplificada pelo posfácio da autoria de João Barrento. De facto, há que procurar onde não existe, onde a luz não incide, o fio condutor da fragmentação que compõe Na Casa de Julho e Agosto.

sábado, 22 de outubro de 2011

António Lobo Antunes «Comissão das Lágrimas»


António Lobo Antunes, enquanto escritor, não para de me surpreender, e como leitor, fico surpreendido a cada obra que tenho o prazer de ler e de, por vezes, escrever o que sinto, o que ouço e o que vejo em cada linha das páginas constituintes de belos romances, baseados geralmente em acontecimentos da vida de Lobo Antunes. Cada livro que compro é garantia de satisfação, interrompida por breves dores de cabeça saudáveis que me deixam na dúvida e obrigam a raciocinar a um ritmo de decifração acelerado.

Comissão das Lágrimas remete de imediato para Angola e para a carnificina do movimento de independência que ocorreu naquele país africano. Em 1977, Agostinho Neto entra em rota de colisão com a tentativa do golpe de Estado levado a cabo por Nito Alves, procedendo à eliminação de todos os que participaram no golpe e todos os que poderiam eventualmente ter afinidade com o mesmo; daqui resultaram milhares de mortos. Para este julgamento dos opositores ao regime, foi criado um tribunal inquisidor intitulado precisamente de Comissão das Lágrimas, liderado pelos braços direitos de Neto. O massacre deu-se na Cadeia de São Paulo, nas casas das vítimas e nas ruas, baseado em listas de alvos a abater definidos pelo governo. Entre essas vítimas estava Elvira, uma guerrilheira do MPLA que supostamente cantou e cantou enquanto foi mutilada pelas forças angolanas do novo governo, auxiliado pelos comunistas cubanos.

Embora a obra seja baseada nestes factos históricos, ela é-nos contada por Cristina, filha de uma imigrante portuguesa branca e de um pai negro, ex-padre, agora ao serviço do governo, que também eles se intrometem na narração da história. Cristina esteve apenas cinco anos em Angola antes de regressar a Lisboa e, no entanto, recorda-se – aparentemente – da vida dos pais em Luanda: a mãe uma dançarina que se prostituía numa casa de alterne, que nos é descrita como uma «fábrica/modista/escritório»; o pai abandonou em jovem os caminhos de Deus para interrogar e torturar agora os desertores e opositores do regime, vendo-se ele próprio mais tarde perseguido e obrigado a fugir com a família para Lisboa. Linearmente, pode ser esta a sinopse do último da extensa lista de romances do autor. Mas, e como é habitual na escrita e temática de Lobo Antunes, as personagens vivem num mundo caótico de realidade vs fantasia, afirmando algo que parece verdade aqui, ora algo que já contradiz essa mesma verdade acolá. Cristina está internada numa clínica, ouve vozes e comunica com os objectos que a rodeiam, num estado de verdadeira esquizofrenia, contribuindo para uma narração alucinada dos acontecimentos que ela, a mãe e o pai (com avós e tios à mistura) vão descrevendo.

Ao longo de mais de trezentas páginas são-nos oferecidos retratos de mortes e mais mortes na cadeia, em valas, na rua, em tudo quanto é terra em Angola, acompanhado por uma musicalidade rápida que Lobo Antunes imprima na sua escrita, deixando o leitor confuso e desgastado com tanta imagem e som que lhe desperta – analepses, elipses e prolepses juntam-se para um pezinho de dança com bastante frequência. Como referido anteriormente, linearmente a obra pode ser interpretada como mais um retorno a Angola e às angústias de Lobo Antunes, convém, no entanto, ressalvar, que a questão dos retornados portugueses é outra das ideias de fundo que é explorada no livro. Cabe ao leitor interpretar e digerir da melhor forma o prato que lhe é servido, distinguindo os delírios e a realidade da escrita de uma das maiores figuras da Literatura mundial.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Haruki Murakami «Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo»


Apontado todos os anos como provável vencedor do Nobel da Literatura, juntando-se assim aos seus conterrâneos Yasunari Kawabata e Kenzaburo Oe na lista de escritores japoneses que venceram o almejado prémio, Haruki Murakami goza de uma enorme popularidade em todo o mundo – bem mais apreciado nos Estados Unidos da América e na Europa do que propriamente no seu país Natal – e apresenta-nos um livro de memórias.

A edição portuguesa, sob o selo da Casa das Letras, é traduzida mais uma vez da tradução inglesa do japonês e é precisamente aqui que o livro começa com um ponto negativo, ao qual eu explico: no inglês a obra intitula-se What I Talk About When I Talk About Running, título em homenagem ao amigo Raymond Carver e à sua obra What We Talk About When We Talk About Love. Ora, em português ficaria bem apropriado um título que tivesse algo a ver com Carver, em vez de algo que remete directamente para o conteúdo do livro. De facto, este auto-retrato do nipónico baseia-se na sua vida de escritor e maratonista e na relação intrínseca que as duas actividades geram no seu dia-a-dia.

Largou um bar de música jazz em prol de uma carreira literária na mesma altura em que se dedicou a correr mais que uma, duas, três vezes como acontece com a maioria dos corredores ocasionais: passou a correr todos os dias. Em vez de mero “jogging”, Murakami organiza metodicamente os dias da semana em função das maratonas e da boa forma física, forma esta que lhe permite ter lucidez e concentração na escrita. A obra apanha um pouco de surpresa o leitor quando o autor começa a abrir-se em relação aos sapatos de corrida que usa, os alongamentos antes e depois de cada corrida, as idas à piscina e a contratação de um treinador para o ajudar na arte de bem nadar – além de maratonista, Murakami gosta de participar em provas de triatlo que, como se sabe, exigem corrida, natação e ciclismo – as férias no Havai onde aproveita o bom tempo para praticar para as maratonas norte-americanas de Boston e Nova Iorque, a comida baseada em verduras e peixe e outros aspectos que não se costumam evidenciar numa pessoa solitária como Murakami.

É, no entanto, este corredor de maratonas, que vão dos quarenta e dois kilómetros na Grécia e os cem no Japão, que impulsiona o escritor de belos romances. Não obstante a abertura de Murakami e a forma acentuada como convida o leitor para conhecer um pouco da sua vida, Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo debruça-se demasiado no correr e pouco no escrever, que é o que mais interessa num escritor. A obra ganha um significado especial para quem já conhece outras publicações do autor, mas temo que pouco, muito pouco, para quem o desconhece. Começar por esta obra, ao invés de Norwegian Wood, entre outros, é como ler as cartas que Kafka escreveu ao pai e só depois mergulhar em O Processo.

sábado, 15 de outubro de 2011

«Broken Flowers – Flores Partidas»


A primeira vez que Bill Murray e Jim Jarmusch trabalharam juntos foi, se não me falha a memória, em 2003, em Café e Cigarros, um daqueles filmes que muitos viram e até compraram para dar um ar de intelectual – agora reina o termo “hispter” -, porque basicamente conta a estória de vários indivíduos que se sentam num café para tomar a bebida negra, inalar e exalar fumo. Não me interpretem mal, eu gostei do filme e até me ri nalgumas ocasiões, no entanto, e parece-me óbvio, o filme não passou da união de vários amigos de longa data para darem duas de treta. Com café e cigarros, pois claro.

Bill Murray é daquelas pessoas cuja expressão facial dá vontade de soltar uma gargalhada seca, tímida, quase forçada. Saltou para a ribalta de Hollywood com Os Caça-Fantasmas na pele do Dr. Peter Venkman já lá vão vinte e sete anos e ultimamente trocou a capital da sétima arte pela Canes europeia – trocou as “comédias comédias” e passou para as comédias dramáticas, ou pelo menos “comédias que não são assim tão cómicas”, mas gratificantes. Rendi-me à pessoa de Murray em Lost in Translation – O Amor É um Lugar Estranho, uma das maiores pérolas deste século, e desde então vou acompanhando a sua carreira que inclui este Broken Flowers – Flores Partidas (havia mesmo necessidade de acrescentar – Flores Partidas ao título?...), um filme que gira em torno de um homem que tende a ser popular entre o sexo oposto.

Sherry (Julie Delpy) deixa Don Johnston (Murray) após encontrar uma carta cor-de-rosa anónima no correio direccionada ao namorado. Na carta, uma mulher explica a Don que este tem um filho de 19 anos e que está empenhado em descobrir onde o pai mora; no entanto, não revela nada sobre ela própria e não se mostra sequer muito amor por Don. Com a ajuda do seu vizinho Winston (Jeffrey Wright), os dois elaboram um plano para esta estranha carta: procurar todas as ex-namoradas que Don teve há exactamente dezanove anos. Avião, carro de aluguer e descoberta das namoradas que poderiam ser mães do suposto filho e, claro, um ramo de rosas sempre à mão. Os encontros com as mulheres correm de forma estranha e desconfortável, embora Don se mostre entusiasmado nalguns dos reencontros, nunca chegando a sentir verdadeira alegria por rever os ex-amores – mesmo após fazer sexo com uma delas.

A vida de Don é enfadonha e ele sente-se miserável, apesar de não admitir essa situação. Para bem dele, a viagem à procura do filho traz-lhe uma lufada de ar fresco na sua vida e rejuvenesce-o uns bons anos, contra a sua própria vontade. Broken Flowers – Flores Partidas é a antítese do drama puro e os seus momentos que apelam à comédia são tímidos, mas bem elaborados por Jarmusch. A prestação de Murray é, mais uma vez, de grande nível, tornando-o num dos mais talentosos da sua geração.

Título original: Broken Flowers
Argumento: Jim Jarmusch
Realização: Jim Jarmusch

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Chuck Palahniuk «Damned»


«Como se Os Renegados de Shawshank tivessem um filho de Visto do Céu e fosse criado por Judy Blume.». Supostamente, seria desta forma estranha que Damned iria soar, mas na realidade, é difícil compreender como o autor falha redondamente na descrição e execução do mui aguardado romance. Tell-All, como aqui foi explicado, não era um livro encantador, sem embargo, um belo tributo ao cinema da primeira metade do século passado e o aroma noir que nele se sentia, colocando a obra num patamar elevado, ainda que, como referido, pesado a espaços.

Ora, se a ideia da referida obra era cortar um pouco o ambiente da crítica ao consumismo e ao “americanismo” de Pygmy, este Damned volta à velha crítica à sociedade demasiado informatizada e disfuncional que vive para o imediato, imersa em bens e serviços que não precisa. O que falha então? A repetição exageradíssima não só destes conceitos, mas pior que isso, uma repetição constante de uma narrativa aborrecida e um gratuito olhar crítico sobre ideias e mais ideias que já foram vistas mais que uma vez - e não só por parte de Palahniuk. Há escritores cuja temática é, razoavelmente, habitual e dos quais não nos cansamos: o colonialismo de António Lobo Antunes, a Barcelona de Zafón, o realismo fantástico da Colômbia de García Márquez, etc; e o mesmo tinha sucedido com Chuck Palahniuk. Até este livro chegar às minhas mãos. 

«Estás aí, Satanás? É a Madison » inicia todos os capítulos da obra, fazendo referência mais que directa à obra de Blume Are You There God? It's Me, Margaret. Madison Spencer é a personagem central da obra: tem 13 anos, é infantil, gorda, inteligente e foi condenada ao Inferno depois de asfixiada pelo seu irmão Goran, apesar de ela mesma inicialmente acreditar que a causa de morte tinha sido overdose de marijuana. Os pais da pequena Madison são figuras mediáticas dos Estados Unidos da actualidade e dominam o reino de Hollywood. Coleccionam casas no Dubai, Oslo, Copenhaga, Paris, Londres e noutras grandes cidades europeias e coleccionam – como está na moda por parte dos actores do cinema mediático norte-americano – filhos adoptivos. Sim, a família Spencer adquire órfãos africanos, sul/centro-americanos e Balcãs como quem vai ao supermercado comprar pão. Um desses Balcãs, o jovem Goran, ainda traumatizado pelos efeitos que a guerra lhe causou, vê-se inserido numa família disfuncional e acaba por matar Madison, como referido.

Os pais de Madison obedecem aos clichés habituais da salvação do planeta; lutam por um planeta mais ecológico e justo, como ex-punks, rastafaris e anarquistas que foram e agora estrelas do cinema, querem dar o exemplo: orgânico é o melhor – e disso não tenho dúvidas. No entanto, viajam em jactos privados que consumem litros incontáveis de combustível – não tem problema, o interior do avião é ecológico – e têm casas que nunca usam em todas as grandes cidades mundiais, com criados que as guardam e limpam em troco de salários de terceiro mundo. A “piñata” do último aniversário de Madison continha não doces, mas sim haxixe, xanax e outras drogas relaxantes que fazem bem ao espírito e fortalecem o ser. Muito resumidamente, o inferno de Madison já existe bem antes de ela ser enviada para o verdadeiro.

No verdadeiro e escaldante inferno, tudo é gerido por grandes demónios - temos, entre muitos outros, Hades e Baal para impor respeito – e povoado por gente conhecida: Heath Ledger, Catarina de Médici, Hitler, Erzsébet Báthory, Calígula, Ivan III, etc, etc. No Inferno também se trabalha e duro: a Madison é-lhe imposto um posto num call center cuja função é comunicar com os vivos e enchê-los de tristeza, facilitando a sua morte e uma melhor integração posterior na vida do Inferno. Basicamente, a estória de Madison é isto e o recordar dos abusos dos seus pais e amigos. Quando o livro ganha realmente algum ânimo e interesse, ou seja, as setenta páginas finais, é-nos dito que a obra continua (algo que já aconteceu em 2007 com Rant e, até hoje, a sua segunda parte não foi sequer anunciada). A criatividade de Palahniuk apresenta-se em quantidades muito reduzidas, por vezes amadoras: guerra com O Paciente Inglês, o consumismo, a riqueza das grandes famílias norte-americanas, a depressão e traumas que cada personagem exibe e a aquisição de bens materiais supérfluos.

Damned é a grande desilusão da escrita norte-americana do ano, é um livro que poderia ser contado em cem páginas em vez de duzentas e cinquenta e, aí, sim, despertar algum interesse e justificar uma continuação. Infelizmente para Palahniuk e para os seus fiéis leitores – eu e mais uns milhões –, tudo ou quase tudo falha aqui. E é uma pena, tendo em conta o passado do autor. 

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

José Cardoso Pires «Dispersos 1 Literatura»


Em 2005 celebraram-se os 80 anos do nascimento de um dos maiores vultos da Literatura portuguesa, o meu querido e estimado companheiro de várias horas ao largo de páginas e mais páginas de pura magia literária. José Cardoso Pires faleceu em 1998 mas a sua memória tem que perdurar em forma de personagem de extrema influência nas letras e na cultura portuguesa, um pequeno génio que tem que ser descoberto pelas novas gerações de leitores.

Para celebrar o nascimento do autor, a D. Quixote publicou uma obra mais que essencial de grande valor, reunindo vários textos publicados em revistas, jornais, catálogos de exposições de amigos e prefácios de livros de 1943 a 1997. Dividida em três grandes capítulos que albergam vários subcapítulos, este livro explora a Literatura portuguesa e a estrangeira sem qualquer tipo de ordem cronológica, embora haja um índice para a mesma cronologia. Relembrando a obra e importância dos amigos Alves Redol e Carlos de Oliveira, passando pela análise à importância de Aquilino Ribeiro, Mário Dionísio, Raúl Brandão e elogiando o outro seu grande amigo, António Lobo Antunes (entre muitos outros), o autor entre ensaios e críticas oferece-nos a nós, os leitores, a sua visão sobre estes referidos, oscilando ao mesmo tempo em “ataques” a escritores de menos envergadura criativa. Entre os estrangeiros, há Proust, há o contador de estórias e fundador da Pátria de Macondo, o grande Gabriel García Márquez, os contos de Steinbeck ou o «capitão» Jorge Amado, autor que influenciou grande parte dos neo-realistas portugueses da década de 40.

Este Dispersos 1 Literatura debruça-se apenas na Literatura, embora haja menção para novos volumes que incidirão sobre Cinema, Artes Plásticas, Desporto, Ditadura e Liberdade, Lisboa, para além de contos, Crónicas, Diversões e Reportagens. Enquanto esses novos registos não são editados, eu e todos os leitores da obra de José Cardoso Pires temos aqui uma importante e rara oportunidade de ler e conhecer mais um pouco da vida do escritor.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

«Stake Land»


Estados Unidos da América: um vírus infectou a grande parte da população, transformando-a num misto de zombies/vampiros sedentos de sangue e canibalismo. Pequenos grupos que não foram infectados com a epidemia lutam para escapar às garras dos monstros, armando-se até aos dentes com armas de fogo e lâminas bem afiadas, para quando necessário, decapitar ou acertar em cheio no coração das criaturas. Até aqui nada de novo (haverá algo original que possa ser inventado para um filme de zombies?), no entanto, Stake Land tem o seu quê de atractivo na pequena estória que cria e nas relações criadas entre as personagens.

Martin (Connor Paolo) assiste, horrorizado, à execução da sua família, quando um homem misterioso conhecido simplesmente por “Mister” (Nick Damici) aparece e o salva da morte certa. A missão de Mister consiste em atravessar o sul dos Estados Unidos rumo ao norte do continente: o éden canadiano, bem lá acima no norte. Para isso, Martin é ensinado em luta mano-a-mano, utilização de facas e disparo de armas para quando a situação o requerer, ele seja capaz de se desenvencilhar sozinho. Ao longo do seu trajecto, Mister e Martin procuram novos recrutas e, entre eles, junta-se uma freira com pouca fé na salvação e uma jovem grávida. O caos e a falta de esperança encontram-se bem retratados pela equipa de realização, apresentando maioritariamente locais escuros e florestas para captar essa sensação de pessimismo, ao que adicionaram uma seita fundamentalista cristã que julga que a epidemia é fruto da ira de Deus e a salvação reside na aniquilação dos infiéis – aqueles que não seguem os seus mandamentos, claro está.

O filme distancia-se um pouco do habitual festim de gore que é servido num filme desta natureza, privilegiando ao invés de forma rude e contemplativa o desespero que o grupo de heróis enfrenta, deixando sempre margem para uma réstia de esperança no comportamento da maioria das personagens; os Estados Unidos devastados pela luta da sobrevivência são quase genuinamente captados por câmaras que deixam o espectador absorver a queda da civilização e o mal que reina entre os fanáticos religiosos. O objectivo de Jim Mickle parece ser óbvio: puxar pelo espectador, obrigando-o a absorver lentamente as imagens. É neste aspecto que Stake Land se distancia das centenas de filmes de terror medianos que saem anualmente; melhor, da porcaria dos Resident Evils e dos milhões de dólares que a sua criação acarreta.

Graças ao bom desempenho de Nick Damici e Connor Paolo e à realização por parte de Mickle, esta película revela-se bem agradável aos olhos daqueles que pedem mais que gore gratuito e personagens femininas que saíram de uma qualquer agência de modelos. 

Realização: Jim Mickle
Argumento: Nick Damici, Jim Mickle

domingo, 2 de outubro de 2011

Valter Hugo Mãe «O Filho de Mil Homens»


Depois do caos e da crueza dos três primeiros romances que tinha lugar em lugares rurais onde a religião funcionava como dogma do bom funcionamento social, Valter Hugo Mãe decidiu dedicar-se a algo diferente, bem diferente. Em vez da desgraça sem esperança no horizonte, eis que este autor escreveu dois romances com uma forte onda de calor humano e muito boa disposição por parte dele mesmo e da maioria das personagens, numa escrita não tão modernista e complexa, mas bela e simples.  

Estas são as vidas de vários seres que povoam uma aldeia rural onde, sim, acontecem desgraças, mas o amor e o valor da vida humana prevalece e acaba por triunfar. Não são muitos os romances onde, de todas as personagens apresentadas, há uma certa dificuldade em determinar quem é a principal, portanto, se dissermos que este registo engloba personagens que desempenham um papel secundário, não estaríamos a ser demasiado arrojados, creio; por outro lado, e visto que praticamente todas estão ao mesmo nível em termos de atenção e exploração do carácter por parte do autor, são igualmente todos personagens principais. Valter Hugo Mãe pretendeu, penso, criar um romance destinado, desta vez, a um público mais vasto e menos específico que na tripla O Nosso Reino, O Remorso de Baltazar Serapião e O Apocalipse dos Trabalhadores, algo que tinha ficado por aperfeiçoar n’A Máquina de Fazer Espanhóis.

Crisóstomo é um homem solteiro de 40 anos que tem um boneco de pano com um sorriso feito de botões vermelhos. O maior desgosto de Crisóstomo é não ter um filho. Não ter filhos e haver crianças a precisarem de pais. Ele quer ser pai: que ser o pai de mil filhos; Camilo, que não conheceu os pais e perdeu o avô torna-se seu filho, fruto do amor que Crisóstomo lhe dá e ensina; Antonino é um homem, mas não um homem vulgar: é um homem maricas. E sendo um homem maricas, o dever dos seus pais seria de rachá-lo ao meio ou espetá-lo num pai e queimá-lo vivo; Matilde, mãe de Antonino não queima nem racha o filho, mas questiona-se se o deveria fazer, visto que os maricas são diferentes. Em vez de o matar, dedica-se a criar os bichos e a tentar entender as diferenças do filho; Isaura, que tem um nome bonito, cedo perde os frutos do pomar que a sua virgindade lhe oferece, levando-a a ser uma pessoa triste e conformada com a solidão. Até que conhece Antonino e Crisóstomo. 

Nesta aldeia rural à beira-mar, estas pessoas começam-se a conhecer e a compreender as suas diferenças, e é precisamente nisso – o diferente – que aprendem a criar laços de amizade e amor. Não obstante a rudeza e os preconceitos que esta aldeia comporta, cruzam-se personagens com muito amor para dar. Bem mais que aquele que pensam já não ter; à medida que interagem uns com uns outros, a mariquice de Antonino, a solidão de Matilde, a tristeza de Crisóstomo e a ingenuidade de Camilo desaparecem. Escrito e descrito com aquele toque “saramaguesco”, aquela ficção hilariante de García Márquez, e claro, o cunho pessoal que Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens é um manifesto de amor e compaixão.

Esta questão do positivismo e do calor humano que o livro transborda poderá render a este autor críticas no sentido da falta de elementos violentos e negativos que os primeiros romances continham e o lançaram para a ribalta. No entanto, e como ele explica, este romance marca um novo ciclo na sua criação literária, sendo ele é o «filho de mil homens e de mil mulheres» e quer, ao mesmo tempo, ser «pai de mil homens e mil mulheres».