segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Hernán Rivera Letelier «A Arte da Ressurreição»


Em 1942 um novo Jesus Cristo foi colocado na Terra para livrar a Humanidade do mal e garantir a sua redenção dos pecados. Ao contrário do primeiro judeu nascido em Belém, Domingo Zárate Vera, conhecido como o Cristo de Elqui, foi dado à luz nos primeiros dias do séc. XX no Chile. Esforçado trabalhador nas minas da sua povoação local, este indivíduo passa a acreditar que é a reencarnação do redentor e decide difundir a palavra do Senhor após a morte de sua mãe, que lhe fazia lembrar a sagrada Virgem.

Esta longa peregrinação teve início nos anos 30 e contou com vários discípulos e virgens auxiliares que, por medo e falta de crença, abandonaram o Cristo de Elqui. No entanto, a determinação da personagem principal é tanta que prega a palavra de Deus munido apenas com uma Bíblia, uma sotaina, umas sandálias feitas de pneus nos pés e um saco de provisões mínimo. A humildade de Domingo Zárate Vega é tal que dorme no meio de arbustos, não aceita dinheiro pelos sermões e fornica apenas quando a mente assim o obriga. Sim, este novo salvador acredita que o saciar dos prazeres carnais é importante para o bem-estar das pessoas, e não raras vezes o encontramos na mata a aliviar a libido com as suas fervorosas seguidoras, ou a benzê-las de pé enquanto elas se ajoelham. Um Cristo moderno.

Quando chega ao norte do país, o Cristo de Elqui ouve falar de uma meretriz que é idolatrada pela população local devido à sua grande capacidade para ajudar os bravos trabalhadores das fábricas de salitre de La Pioja. Ao fim de um bom dia de trabalho, e por mais dorida e cansada que possa parecer estar, o coração e a cama de Magalena Mercado são tão grandes que albergam sempre espaço para mais um cliente. Esta «santa puta» - assim apelidada pela população e pelo próprio Cristo de Elqui -, é fiel seguidora da Santa Virgem, de tal como que ao lado da cama tem o seu bem mais precioso: uma estátua Virgem, pois claro. Mas, e para que o Senhor e a própria Virgem Santíssima não a excomunguem da vida cristã, Magalena tem sempre o cuidado de tapar a cara da virgem com um pano sempre que atende a clientela. 

O grande objectivo da vida do nosso seguidor do Padre Celestial (embora me pareça que a tradução mais adequada seria “Pai Celestial”, pois “padre” em castelhano significa “pai” e “padre” ao mesmo tempo) passa a ser convencer a santa prostituta a segui-lo pelos caminhos sagrados, contando o Cristo de Elquí com a boa fama que Magalena usufrui para conquistar mais seguidores. O autor deste romance, Hernán Rivera Letelier, um chileno nascido em 1950 que venceu já vários prémios e distinções – dos quais se destacam o Prémio Alfaguara e a nomeação para Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura de França -, criou um irónico e sarcástico romance que lida com o fanatismo cristão e com aspectos da cultura, política e sociedade no seu país. As personagens são fortes, determinadas nos seus modos de estar, numa época de miséria que foram os anos 30/40 do Chile, e vêm-se envolvidas em situações surreais e hilariantes, tal é a fluidez humorística da escrita de Letelier.

A Arte da Ressurreição é um romance latino-americano muito interessante e de elevado valor que peca pela tradução deficiente de Francisco Guedes de Carvalho: é incompreensível que exijam do leitor quantias são elevadas como se praticam em Portugal, quando o tradutor não consegue distinguir “à” de “há” ou, por exemplo, quando troca “fizesse” por “fize-se”.

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