sábado, 22 de outubro de 2011

António Lobo Antunes «Comissão das Lágrimas»


António Lobo Antunes, enquanto escritor, não para de me surpreender, e como leitor, fico surpreendido a cada obra que tenho o prazer de ler e de, por vezes, escrever o que sinto, o que ouço e o que vejo em cada linha das páginas constituintes de belos romances, baseados geralmente em acontecimentos da vida de Lobo Antunes. Cada livro que compro é garantia de satisfação, interrompida por breves dores de cabeça saudáveis que me deixam na dúvida e obrigam a raciocinar a um ritmo de decifração acelerado.

Comissão das Lágrimas remete de imediato para Angola e para a carnificina do movimento de independência que ocorreu naquele país africano. Em 1977, Agostinho Neto entra em rota de colisão com a tentativa do golpe de Estado levado a cabo por Nito Alves, procedendo à eliminação de todos os que participaram no golpe e todos os que poderiam eventualmente ter afinidade com o mesmo; daqui resultaram milhares de mortos. Para este julgamento dos opositores ao regime, foi criado um tribunal inquisidor intitulado precisamente de Comissão das Lágrimas, liderado pelos braços direitos de Neto. O massacre deu-se na Cadeia de São Paulo, nas casas das vítimas e nas ruas, baseado em listas de alvos a abater definidos pelo governo. Entre essas vítimas estava Elvira, uma guerrilheira do MPLA que supostamente cantou e cantou enquanto foi mutilada pelas forças angolanas do novo governo, auxiliado pelos comunistas cubanos.

Embora a obra seja baseada nestes factos históricos, ela é-nos contada por Cristina, filha de uma imigrante portuguesa branca e de um pai negro, ex-padre, agora ao serviço do governo, que também eles se intrometem na narração da história. Cristina esteve apenas cinco anos em Angola antes de regressar a Lisboa e, no entanto, recorda-se – aparentemente – da vida dos pais em Luanda: a mãe uma dançarina que se prostituía numa casa de alterne, que nos é descrita como uma «fábrica/modista/escritório»; o pai abandonou em jovem os caminhos de Deus para interrogar e torturar agora os desertores e opositores do regime, vendo-se ele próprio mais tarde perseguido e obrigado a fugir com a família para Lisboa. Linearmente, pode ser esta a sinopse do último da extensa lista de romances do autor. Mas, e como é habitual na escrita e temática de Lobo Antunes, as personagens vivem num mundo caótico de realidade vs fantasia, afirmando algo que parece verdade aqui, ora algo que já contradiz essa mesma verdade acolá. Cristina está internada numa clínica, ouve vozes e comunica com os objectos que a rodeiam, num estado de verdadeira esquizofrenia, contribuindo para uma narração alucinada dos acontecimentos que ela, a mãe e o pai (com avós e tios à mistura) vão descrevendo.

Ao longo de mais de trezentas páginas são-nos oferecidos retratos de mortes e mais mortes na cadeia, em valas, na rua, em tudo quanto é terra em Angola, acompanhado por uma musicalidade rápida que Lobo Antunes imprima na sua escrita, deixando o leitor confuso e desgastado com tanta imagem e som que lhe desperta – analepses, elipses e prolepses juntam-se para um pezinho de dança com bastante frequência. Como referido anteriormente, linearmente a obra pode ser interpretada como mais um retorno a Angola e às angústias de Lobo Antunes, convém, no entanto, ressalvar, que a questão dos retornados portugueses é outra das ideias de fundo que é explorada no livro. Cabe ao leitor interpretar e digerir da melhor forma o prato que lhe é servido, distinguindo os delírios e a realidade da escrita de uma das maiores figuras da Literatura mundial.

5 comentários:

  1. As tuas criticas são muito justas e muito eloquentes.

    Antonio Lobo Antunes é um escritor ainda por ler. Mas a entrevista que este deu á Rtp abriu o meu apetite em me embrenhar na obra dele.

    Abraço

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  2. Olá, Miguel. Mais uma vez, obrigado pelas palavras e espero que te tenha despertado o gosto pelo autor que mais admiro actualmente. Chegaste a ver a entrevista na SIC? Essa incidiu mais sobre o livro, ao passo que a da RTP se focou mais no nível pessoal dele.

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  3. Simão,

    Já comprei o livro. Não li o teu comentário sobre o livro, pois só gosto de fazer depois de ler as obras.
    Gostei muito de Sôbolos Rios que Vão, foi um dos melhores livros que li até hoje.

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  4. Gostei muito do livro. É muito duro, mas descreve a realidade do que se passou ou se passa….
    Lobo Antunes e Saramago nunca gostaram um do outro, mas o trabalho dos dois é perfeito quando toca a descrever a crueldade humana. Como leitor não sei dos dois qual é o melhor.

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  5. Olá, Tiago.
    Eles nunca gostaram um do outro, mas essa rivalidade até os tornava ainda mais 'engraçados', por assim dizer. O que mais trabalha os romances em termos de execução é, para mim, António Lobo Antunes; no entanto, em termos de fábulas, Saramago é Saramago.

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