Depois do caos e da crueza dos três primeiros romances que tinha lugar em lugares rurais onde a religião funcionava como dogma do bom funcionamento social, Valter Hugo Mãe decidiu dedicar-se a algo diferente, bem diferente. Em vez da desgraça sem esperança no horizonte, eis que este autor escreveu dois romances com uma forte onda de calor humano e muito boa disposição por parte dele mesmo e da maioria das personagens, numa escrita não tão modernista e complexa, mas bela e simples.
Estas são as vidas de vários seres que povoam uma aldeia rural onde, sim, acontecem desgraças, mas o amor e o valor da vida humana prevalece e acaba por triunfar. Não são muitos os romances onde, de todas as personagens apresentadas, há uma certa dificuldade em determinar quem é a principal, portanto, se dissermos que este registo engloba personagens que desempenham um papel secundário, não estaríamos a ser demasiado arrojados, creio; por outro lado, e visto que praticamente todas estão ao mesmo nível em termos de atenção e exploração do carácter por parte do autor, são igualmente todos personagens principais. Valter Hugo Mãe pretendeu, penso, criar um romance destinado, desta vez, a um público mais vasto e menos específico que na tripla O Nosso Reino, O Remorso de Baltazar Serapião e O Apocalipse dos Trabalhadores, algo que tinha ficado por aperfeiçoar n’A Máquina de Fazer Espanhóis.
Crisóstomo é um homem solteiro de 40 anos que tem um boneco de pano com um sorriso feito de botões vermelhos. O maior desgosto de Crisóstomo é não ter um filho. Não ter filhos e haver crianças a precisarem de pais. Ele quer ser pai: que ser o pai de mil filhos; Camilo, que não conheceu os pais e perdeu o avô torna-se seu filho, fruto do amor que Crisóstomo lhe dá e ensina; Antonino é um homem, mas não um homem vulgar: é um homem maricas. E sendo um homem maricas, o dever dos seus pais seria de rachá-lo ao meio ou espetá-lo num pai e queimá-lo vivo; Matilde, mãe de Antonino não queima nem racha o filho, mas questiona-se se o deveria fazer, visto que os maricas são diferentes. Em vez de o matar, dedica-se a criar os bichos e a tentar entender as diferenças do filho; Isaura, que tem um nome bonito, cedo perde os frutos do pomar que a sua virgindade lhe oferece, levando-a a ser uma pessoa triste e conformada com a solidão. Até que conhece Antonino e Crisóstomo.
Nesta aldeia rural à beira-mar, estas pessoas começam-se a conhecer e a compreender as suas diferenças, e é precisamente nisso – o diferente – que aprendem a criar laços de amizade e amor. Não obstante a rudeza e os preconceitos que esta aldeia comporta, cruzam-se personagens com muito amor para dar. Bem mais que aquele que pensam já não ter; à medida que interagem uns com uns outros, a mariquice de Antonino, a solidão de Matilde, a tristeza de Crisóstomo e a ingenuidade de Camilo desaparecem. Escrito e descrito com aquele toque “saramaguesco”, aquela ficção hilariante de García Márquez, e claro, o cunho pessoal que Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens é um manifesto de amor e compaixão.
Esta questão do positivismo e do calor humano que o livro transborda poderá render a este autor críticas no sentido da falta de elementos violentos e negativos que os primeiros romances continham e o lançaram para a ribalta. No entanto, e como ele explica, este romance marca um novo ciclo na sua criação literária, sendo ele é o «filho de mil homens e de mil mulheres» e quer, ao mesmo tempo, ser «pai de mil homens e mil mulheres».
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